Mulheres ciganas em Portugal :
um outro retrato do feminino


Mesmo com tanta discriminação e com pouca liberdade dentro da
própria etnia, as mulheres ciganas resistem em Portugal.


por Juliana Reigosa

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“Ser cigana em Portugal é difícil”, afirma Deolinda Vicente. “É ser discriminada”, completa Eva Gonçalves. “Às vezes, quando vamos a um sítio qualquer, não somos bem aceites como as pessoas que não são ciganas”, ressalta Maria Manoela Vicente. “A sociedade portuguesa ainda é muito racista”, enfatiza Maria João Gonçalves. “Se formos pedir emprego em supermercados ou lojas, por exemplo, não nos dão”, explica Carla Sofia Gonçalves. “Há pessoas que nos olham com outros olhos, mas somos ciganas com todo o prazer”, avalia Nara Gonçalves.

O que essas seis mulheres têm em comum? São ciganas portuguesas, que mesmo com todas as dificuldades dentro e fora de sua etnia, têm orgulho por serem mulheres e ciganas. Cada uma da sua maneira, rompem as barreiras da discriminação, do mesmo modo que seguem costumes e tradições de um povo que está há mais de 500 anos em Portugal.

Eva Gonçalves e Nara Gonçalves são tia e sobrinha. Deolinda Vicente e Maria Manoela Vicente são primas. Já Maria João Gonçalves e Carla Sofia Gonçalves são irmãs. Todas elas são nascidas e criadas na Covilhã. As quatro primeiras moram na vila de Tortosendo, enquanto Maria João e Carla Sofia vivem na freguesia da Boidobra. Assim como a maioria dos ciganos em Portugal, a principal atividade econômica que exercem é a venda ambulante de roupas, seja em feiras ou de porta em porta. Maria João, em particular, tem uma loja de sapatos na Covilhã.

Dentro da cultura cigana, a principal queixa das mulheres é com a pouca liberdade dada a elas. Enquanto os homens da etnia têm liberdade para fazerem tudo, as mulheres não têm essa independência. “As ciganas são umas escravas”, lamenta Deolinda Vicente, explicando que as mulheres não podem fazer tudo o que querem. “Enquanto as raparigas que não são da etnia têm outras oportunidades de usar a vida, a nossa já é um bocadinho fechada”, afirma. Deolinda, entretanto, ressalta que “é por aí” a vida de cigana. “É bonita!”.


Nos últimos dez anos, algumas situações já mudaram dentro da tradição cigana e muitas famílias já não seguem tão rigidamente determinadas normas da etnia. “Já podemos usar minissaias”, comemora Carla Sofia Gonçalves. Segundo costumes mais antigos e rígidos, as mulheres não podiam usar roupas que mostrassem as pernas, assim como também não podiam vestir calças ou calções. Apenas era permitido usar saias compridas e blusas com mangas, de preferência que cobrissem todo o braço, além de não poderem cortar os cabelos. “Agora já podemos vestir quase tudo”, destaca Deolinda Vicente.

Entretanto, em outros aspectos, as ciganas ainda convivem com certas restrições em relação aos homens. Elas não podem, por exemplo, fumar, beber álcool e frequentar ambientes fechados, como discotecas e bares, sem a companhia do pai, irmão ou marido. “Não poderíamos nem que fôssemos acompanhadas de dez raparigas, já que na etnia cigana isso fica mal”, ressalta Deolinda Vicente.

A pouca liberdade incide, inclusive, sobre o percurso escolar das mulheres ciganas. A trajetória delas é marcada pela baixa escolaridade e maior índice de abandono escolar, até mesmo comparado ao dos homens ciganos. Dentro da maior parte das famílias dessa etnia, as meninas costumam estudar apenas até o 4º ano, quando várias já têm entre 14 e 16 anos. Depois disso, são obrigadas pelos pais a abandonarem os estudos. “Pode haver problemas lá na escola com rapazes, já que a menina pode se apaixonar por outra pessoa que não é cigana e depois é um caso sério e, então, os pais têm que castigar”, explica Deolinda Vicente.

Isso explica o cenário de baixa escolaridade retratado no Estudo Nacional sobre as Comunidades Ciganas, publicado em 2014. Das 1.599 pessoas ciganas entrevistadas, cerca de 52% não tinham frequentado a escola ou concluído o 1º Ciclo do Ensino Básico. Levando em conta que o ensino obrigatório em Portugal é de 12 anos, cuja idade escolar compreende entre 6 e 18 anos (Lei n.º 85/2009, de 27 de agosto), esse quadro fica ainda mais alarmante.

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Longe das salas de aula, a trajetória das ciganas é quase sempre a mesma: casam-se cedo, têm filhos ainda jovens e costumam viver na sombra do marido, dedicando-se a serem esposas, mães e donas de casa. Mas já há muitas exceções. Deolinda Vicente, Maria Manoela Vicente, Eva Gonçalves e Maria João Gonçalves, por exemplo, escolheram ser solteiras. “Eu tinha muitos pretendentes, mas não quis casar com nenhum”, afirma Deolinda Vicente, que brinca: “Alguns eram até bom partido, tinham muito dinheiro, mas eu não quis”.

Já Carla Sofia Gonçalves não seguiu o mesmo caminho. A cigana, que tem 40 anos, abandonou os estudos no 4º ano e, assim como a maioria das mulheres da sua etnia, casou ainda adolescente, quando tinha 16 anos. Aos 17 engravidou pela primeira vez. Hoje, tem dois filhos e já é avó. “São homens, graças a Deus”, afirma. De acordo com Carla Sofia, “hoje já não tem mais tanta dificuldade se nascer menina, mas antigamente era muito difícil”. Isso porque, na etnia cigana, os homens preferem ter filhos rapazes. “Quando nasce uma garota, é um enterro para os ciganos”, ressalta Deolinda Vicente. A cigana explica que “a coisa mais triste para um homem de sua etnia é uma rapariga nascer”. Ainda de acordo com Deolinda, “se é rapaz, eles gastam muito dinheiro, fazem festa”.


Quem vai na contramão de muitos desses estereótipos é Nara Gonçalves. Com apenas 13 anos, está no 6º ano e pretende seguir estudando, recebendo o apoio da família. A cigana tem mais três irmãs: duas mais velhas, que abandonaram os estudos, e uma ainda pequena, que não iniciou na escola. Um facto, em particular, chama a atenção: na escola de Nara, a turma dela é composta apenas por ciganos. “Até à primária, andam juntos ciganos e não ciganos, e a partir do 5º ano, nos separam dos demais alunos”, conta. Na turma composta por apenas seis alunos, a jovem é a única mulher da sala. “As outras meninas saíram da escola há uns três anos e hoje estão casadas e com filhos”, conta. Já Nara sonha ter uma trajetória de vida diferente: “Gostaria de ser doutora”.

Deolinda Vicente, Maria Manoela Vicente, Eva Gonçalves, Maria João Gonçalves e Carla Sofia Gonçalves não tiveram a mesma oportunidade de Nara quanto à escolaridade. As cinco mulheres abandonaram a escola ainda novas, com cerca de 14 anos. Hoje, lamentam. “Se eu for pedir um emprego e mostrar que só estudei até o 4º ano, não me dão e ainda mandam eu ‘colher batatas’”, conta Eva Gonçalves. Se tivessem tido a mesma oportunidade de Nara Gonçalves, as ciganas gostariam de ter tido outro percurso escolar. Deolinda gostaria de ter sido jornalista. Maria Manoela queria ter sido professora. Eva e Maria João, doutoras. E Carla Sofia imaginava ser doutora, advogada ou professora.

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