Estatuto Editorial | Editorial | Equipa | O Urbi Errou | Contacto | Arquivo | Edição nº. 360 de 2006-12-26 |
Mizarela: talha-se o hábito à medida do tempo
Diz-se que a riqueza de um povo se calcula pela medida da sua cultura. Em Portugal, as aldeias são um dos mais fiéis depositários desse legado. Cada uma guarda em si não só a tradição no seu sentido mais abrangente, mas também os rituais de Natal, essas pequenas marcas sazonais tão genuínas. No concelho da Guarda, a Mizarela também tem as suas: o madeiro “não é um madeiro qualquer”.
> Igor CostaNo início é o verbo. E o verbo é andar. Com os primeiros dias de Dezembro, arrancam os jovens para o “fogo”. A época não é dada a incêndios, por isso o significado da expressão só se compreende tendo em conta o seu contexto e a sua finalidade. Por esta altura, os rapazes solteiros de Mizarela, uma pequena freguesia do concelho da Guarda, passam os domingos a juntar lenha para o madeiro de Natal. “Aos sábados há sempre que fazer, por isso o dia seguinte é sempre o melhor,” explicam alguns dos jovens. Antes não era assim. “Normalmente escolhíamos a noite de sexta-feira para sábado ou de sábado para domingo”, conta Mário Costa, que tem hoje 39 anos. “Sempre à noite, o pessoal juntava-se por volta das sete ou oito horas, ao fim do dia de trabalho normal, até porque nesta altura é a época da azeitona.”
Mas os tempos são mesmo outros. Em vez de irem e pé, os jovens levam hoje carrinhas ou tractores onde se transportam a eles, à lenha e ao material. Os instrumentos de corte já não são os tradicionais, pois a moto-serra é uma grande ajuda. Durante a semana trabalha-se na cidade, o sábado é para as coisas do campo, e o tempo que se reserva ao madeiro, tem de ser rentabilizado. O garrafão é a marca comum a todos os tempos, bem como o local para onde se dirigem. “A área é enorme,” explica Ricardo Sousa. O Soito ocupa, de facto, uma extensão considerável daquela zona do Vale do Mondego. O terreno é baldio, por isso o critério de corte pertence a quem vai e define os objectivos. No local multiplicam-se os acessos, que a passagem de actividades radicais, como o downhill, têm desenvolvido. Ricardo Sousa traça as principais marcas da tradição. “A malta diverte-se, bebem-se uns copos e a tradição mantém-se.” Vítor Sousa, pai de Ricardo, confirma: “enquanto eu puder, a tradição não há-de acabar. Se não forem os solteiros, são os casados, mas o fogo não acaba.”
Se há alguns anos a preservação ambiental já era tida em conta, o abandono do meio rural atribui à tradição natalícia um peso ainda maior. É uma das poucas ocasiões em que os jovens se dirigem à floresta, e o seu desbaste obedece a princípios bem claros. Pinheiros tortos e castanheiros velhos são os primeiros a cair. “Há pinhais que estão desenvolvidos por nossa causa,” reforça o jovem de 24 anos.
De uma forma ou de outra, a tradição sempre incluía todo o povo. “Normalmente, quando chegávamos ao centro da aldeia havia os mirones, casados, que iam gozando ou elogiando a lenha que trazíamos,” lembra Mário Costa. A população oferecia também o vinho que se bebia nas idas ao mato. O que não era dado, “comprávamos com o nosso dinheiro, entre todos, ou ficávamos a dever e depois, com as ofertas, pagávamos.” Estas ofertas são recolhidas, ainda hoje, depois de o fogo estar montado. A técnica é a mesma, e quase exclusiva. A única diferença em relação a antigamente está no início. Antes, o buraco era cavado na terra. Hoje, uma manilha de cimento está enterrada na vertical, no adro já calcetado. É aí que se espeta a “forcalha”, em torno da qual se encaixa toda a lenha.
Depois de composto o madeiro, os jovens partem em romaria, porta a porta, pedindo lenha miúda, palha, dinheiro, vinho ou uma chouriça. “As pessoas convidavam sempre para um copo, e a gente aceitava sempre. Claro que ao fim de um, dois, três, quatro, já se estava meio quente…” O que Mário Costa conta, de há uns vinte anos, acontece ainda hoje, e acontecia ainda muito antes. “Pedíamos lenha e vinho, que dinheiro não havia. Cada casa tinha de dar um molho de lenha.” , conta Raul Sousa. Já quando Vítor Sousa andava naquelas lides, há mais de trinta anos, “pegava-se no vinho que havia e passava-se pelas pessoas, pedindo para as despesas que havia e para fazermos uma borga no fim.”
Terminado o jantar, as pessoas vão-se juntando. Crianças e idosos, homens e mulheres, todos à volta da fogueira, à espera que tudo aconteça.“Há um que está no campanário e, quando é meia-noite, toca o sino. Deita-se o fogo ao madeiro, deitam-se foguetes quando os há e aquilo começa a arder.” Assim é, como sempre foi, recorda Vítor Sousa. Tocar ao sino é uma das partes mais arriscadas da noite. “O Trindade aguentava-se lá quase a noite toda,” atira Raul Sousa, do cimo dos seus 76 anos. A proximidade aumenta o calor a níveis que, na torre da igreja, se tornam insuportáveis. “Já aconteceu ter de sair por causa da fagulhas,” lembra Ricardo Sousa. “É bom saber que é ouvido nas outras terras, e o sino quase não pára de tocar porque muita gente lá vai, e vamos trocando.” Depois é ver arder a lenha, enquanto a chuva não afasta quem ali está. Porque o frio é abafado por tão grande fogueira e pelos cantares. Mário Costa reforça aquilo que é parte do cariz religioso da tradição. “Logo depois de se acender a fogueira cantava-se ao menino Jesus. Mas toda agente: mulheres, rapazes, enquanto os solteiros davam a volta com o vinho, em torno da fogueira.”Ao fim de umas horas já são muitas, as brasas. Assa-se então a carne que se compra, mais as ofertas: chouriças, farinheiras e morcelas, que é tempo de enchido fresco.
Antes e depois, o povo começa a rumar a suas casas. A excepção vai para os solteiros, que se refastelam ao calor do fogo que construíram, e os casados, que para si criaram um costume. A sueca de todos os dias viu-se substituída, há alguns anos. O dia é diferente, e também o é jogo de cartas. No café, a noite de Natal é noite de lerpa. No adro, continua a arder o madeiro. Os jovens lá ficam, à volta. Uns dormem, outros comem. Outros ali ficam, sem fazerem nem uma coisa nem outro. Só pela tradição. A lenha dura até ao ano novo. Se chove, ou não arde toda nessa noite, há nova fogueira na passagem de ano. A competitividade de terra para terra também por aqui passa. Por isso vê-se ao longe esta chama, que chega com os sons do sino às extremidades do vale e aos topos das encostas.
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