Ciganofobia em Portugal: especialistas apontam razões e caminhos para o fim da discriminação

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Segundo dados de 2017 do Alto Comissariado para as Migrações (ACM), há 37 mil pessoas ciganas em Portugal, o que representa cerca de 0,3% da população do país. Em relação ao total de ciganos que vivem em toda a Europa, cujo número é estimado em 18 milhões, as pessoas da etnia em Portugal correspondem a cerca de 0,2% dos ciganos residentes no continente europeu. Para analisar a discriminação contra esse povo em Portugal é preciso voltar na História e entender como as pessoas dessa etnia chegaram ao país.

O antropólogo José Gabriel Pereira Bastos, que investiga a situação das minorias étnicas em Portugal desde 1997, e muito particularmente a perseguição contra o povo cigano, explica que há três grupos dessa etnia em Portugal: os ciganos que entraram pela fronteira do Alentejo, no final do século XV; os que entraram pelo interior norte, no final do século XIX, “sendo que os primeiros não os reconhecem como ciganos, já que não obedecem à Lei Cigana” (de acordo com o pesquisador, chamam-lhes Chabotos ou Recos); e o atual grupo de ciganos do leste da União Europeia, que vivem de roubar ou mendigar.

Autor do livro “Portugueses Ciganos e Ciganofobia em Portugal”, Pereira Bastos aponta uma série de razões que explicam a ciganofobia em Portugal, conceito criado pelo antropólogo para definir o modo hegemónico de expressão do racismo em Portugal, tornando os ciganos o “mau objeto” da identidade nacional: 

Razões para a ciganofobia em Portugal


Antropólogo
José Gabriel Pereira Bastos

1

Drástica tentativa de genocídio feita desde o século XVI, em Portugal e no resto da Europa, que criou a atitude básica de perseguição histórica, que muitos gostariam de ver concretizada hoje em dia.

2

Terem sobrevivido mantendo uma cultura tribal própria, que nada tem a ver com a europeia, e com alguns costumes chocantes, associados à defesa da honra (guerra mortal entre contrários, casamentos endogâmicos púberes com prova de virgindade, poder geronte encoberto e invisível para fora).

3

Mistura de orgulho cigano, em confrontação aberta com outros orgulhos (como o africano), com a marginalização forçada e buscada.

4

Manutenção de uma percentagem de famílias forçadas ao nomadismo, sobretudo a sul, que fazem pequenos roubos de alimentos para sobreviver, e a existência forçada de núcleos “habitacionais” ciganos, a sul (Beja e Moura, por exemplo), segregados pelas autoridades municipais e pela polícia. 

5

Discriminação interna que as novas elites de mediadores e bolseiros universitários, patrocinadas pelo Estado, alimentam, prosseguindo políticas europeias dominadas pelos Rom (ciganos de Leste, maioritários e mais letrados, devido à educação comunista ter sido obrigatória, diferenciados dos Sinti e dos Manouches, da Europa Central, e dos Calon, da Ibéria), mantendo grande distância em relação às camadas abandonadas à sua miséria e perseguidas, de quem não falam e parecem querer que não se fale, para defender o orgulho cigano.

6

Em Portugal, os ciganos têm uma taxa de aprisionamento altíssima, sobretudo por muitos viverem do contrabando, da contrafação e do pequeno comércio de drogas, para poderem sobreviver e alimentar os filhos.

7

Cada Povo precisa do seu “mau objecto” e, na Europa mediterrânica, esse papel cabe aos ciganos (na Europa do Norte, predomina a Islamofobia e os Ciganos foram obliterados com a criação de uma categoria ‘marginal’ de cidadãos em movimento (Travellers, Gents du Voyage, Caminanti, etc.), com um estatuto diferenciado e com apoios promovidos pelos Estados, para se manterem em movimento, e não se integrarem.

8

Políticas da União Europeia seguidas em Portugal, estarem erradas na sua concepção – a Ciganofobia não desaparece pela criação de elites escolarizadas e politizadas, mas pela aceitação pelos Estados Europeus e por Portugal do erro das políticas históricas de criminalização e tentativa de genocídio e pela introdução de uma Política de Discriminação Positiva. Esse tipo de política, que já é avançado desde 1950 da Índia à África do Sul e à Califórnia, tira as camadas mais baixas da miséria. Foi assim que na Índia foram introduzidas alterações profundas na situação de Tribais e de Intocáveis, que em duas gerações chegaram à Presidência da Índia e de vários Estados indianos, vencendo a resistência cultural do Hinduísmo tradicional. 


A socióloga Olga Magano, que investiga a integração e exclusão das pessoas ciganas em Portugal, destaca que existem em relação às pessoas ciganas discriminação, segregação social e espacial e desigualdade social. “Em grande parte, este processo reprodutor de desigualdades sociais deve-se ao racismo instalado em muitas instituições e que tende a ser reproduzido por profissionais nas mais variadas áreas da vida quotidiana: educação, habitação, saúde, área do emprego e formação profissional e na relação social no dia-a-dia”, explica.

De acordo com a pesquisadora, o principal problema que afeta as pessoas ciganas é o abandono escolar precoce e a não realização da escolaridade obrigatória. “No caso das mulheres ciganas, a situação é ainda mais grave do que a dos homens, embora em ambos os casos continue a ser dramática a situação de analfabetismo e iliteracia”, ressalta Olga Magano. Já para José Gabriel Pereira Bastos, a miséria das camadas abandonadas e marginalizadas e a falta de uma política de discriminação positiva são as principais problemáticas que incidem sobre as pessoas da etnia cigana.

Quanto à posição da mulher dentro da etnia cigana, Olga Magano ressalta que “é possível encontrar mulheres com diferentes papéis dentro da família nuclear ou mais alargada, uns mais tradicionais e outros mais modernos”. Ainda de acordo com a investigadora, “certamente que com mais escolaridade e empoderamento da mulher cigana haverá consequências para a cultura, mas essas transformações fazem parte de todos os processos sociais, uma vez que não são estáticos, nem cristalizados no tempo”.

 “O povo cigano terá o futuro que o Estado Português, 
dito democrático, decidir”

José Gabriel Pereira Bastos, Antropólogo


Mestre em Relações Interculturais e doutorada em Sociologia, Olga Magano foi uma das coordenadoras do Estudo Nacional das Comunidades Ciganas de 2014. Um dos pontos abordados no relatório é justamente a questão da escolaridade, revelando que é muito baixa entre os ciganos e que atinge proporções mais preocupantes entre as mulheres.

Para a pesquisadora, só é possível ultrapassar o problema do abandono e insucesso escolar com o melhoramento de políticas educativas integrativas que incorporem conhecimentos sobre a cultura cigana, desenvolvam várias metodologias pedagógicas com currículos alternativos e também com análise e estudo das práticas das escolas e dos professores. “Por um lado, importa desenvolver um modelo de valorização da cultura cigana, e, por outro, trabalhar com as famílias dessa etnia a emergência da escolarização numa sociedade cada vez mais competitiva”, explica.

Na maioria das vezes, a trajetória de uma mulher cigana é retratada pela prevalência de casamentos precoces e alto índice de abandono escolar. Para Olga Magano, “tende-se a olhar para as mulheres e homens ciganos como seres humanos que pararam no tempo, mas não é assim e isso é visível em muitos aspetos nas famílias ciganas contemporâneas”. A socióloga explica que “atualmente é possível encontrar mulheres ciganas com diferentes percursos de vida, sendo que estas mulheres são diferentes das suas mães e avós”. Olga Magano defende ainda a urgência de “olhares plurais que revelem essa riqueza e diversidade de percursos de pessoas ciganas”.

“Tende-se a olhar para as mulheres e homens ciganos como seres humanos que pararam no tempo, mas não é assim”

Olga Magano, Socióloga


Nos últimos anos, têm surgido algumas iniciativas promovidas por mulheres da etnia que pretendem contribuir para a alteração da imagem do papel da mulher cigana. Uma das principais é a Associação de Mulheres Ciganas (AMUCIP), fundada em 2000. Para a socióloga Olga Magano, as mulheres ciganas que participam desse projeto têm papel primordial para “conseguirem desenvolver ativismo, mas também um papel de educadoras, com uma forte intervenção junto de crianças em idade escolar, com o apoio ao estudo e Atividade dos Tempos Livres (ATL)”.

Ainda de acordo com a pesquisadora, mais recentemente, inserido no âmbito do Projeto Opré Chavalé, que apoia a entrada de ciganos no ensino superior, “mais mulheres ciganas se encontram a estudar e a representar as ciganas em várias conferências e projetos de intervenção e de investigação”. E em 2017, surgiu um movimento liderado pela atriz e ativista Maria Gil que vem conquistando voz, cuja ideia central é “mulheres e ciganas”, que “existem e resistem”.

Caminhos para o fim da ciganofobia em Portugal


Na teoria, os ciganos conquistaram a cidadania portuguesa com a Constituição de 1822, depois de passados quase quatro séculos da entrada do povo em Portugal. No entanto, ainda hoje, as pessoas dessa etnia convivem com uma situação de discriminação e vulnerabilidade, especialmente em relação à educação, habitação e emprego.

Para José Gabriel Pereira Bastos, “o povo cigano terá o futuro que o Estado Português, dito democrático, decidir”. O antropólogo avalia que “o Estado é adepto da irresponsabilidade histórica e esconde-se por detrás do ‘universalismo jurídico’ da Constituição”. De acordo com o pesquisador, isso “é uma forma disfarçada de individualismo jurídico para esconder os crimes históricos interculturais, como o fez e faz com os ex-escravos e com os ex-colonizados imigrados para cá”.

Co-fundador do Centro de Migrações e Minorias Étnicas (CEMME) e do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Pereira Bastos tem uma proposta clara para o fim da ciganofobia em Portugal. A tese do pesquisador contempla nove pontos.



Proposta para o fim da ciganofobia em Portugal

Antropólogo
José Gabriel Pereira Bastos

1

Instauração de um Provedor da Minoria Cigana, com um projeto de ação e prazos bem definidos para atingir objetivos financiados.

2

Um Fundação (como a Fundação Secretariado Gitano, na Espanha), financiada pelo Estado e por Mecenato, com um Órgão central com maioria cigana, com ação de longa duração.

3

Retirada da questão habitacional da alçada das Autarquias, que temem os eleitores ciganófobos; 

4

Resolução imediata e acelerada da situação dos que vivem em condições miseráveis, por meio de verbas europeias, resolvendo com eles, primeiro, a questão da integração habitacional e de um subsídio familiar garantido e, em seguida, a questão educacional e de emprego ou forma apoiada de subsistência digna.

5

Medida institucional de apoio ao comércio cigano, área onde sempre se mostraram competentes. 

6

Medida de apoio à promoção da cultura cigana (com tanto sucesso na Andaluzia, comunidade autônoma da Espanha).

7

Continuação da política europeia de criação de elites ciganas e de apoio à inserção escolar das novas gerações e dos adultos.

8

Reserva de 1% dos postos de trabalho da função pública para ciganos escolarizados, nas funções a que concorram. 

9

Divulgação responsável da História dos Ciganos em Portugal, tirando do povo a ignomínia da xenofobia e exigindo que o Estado assuma as suas responsabilidades históricas na perseguição genocida ao povo cigano, que mantém desde a Monarquia, de forma mais ou menos disfarçada, sobretudo no mundo rural.


No entanto, apesar da proposta clara para a integração das pessoas dessa etnia, o antropólogo ressalta que “não será seguida porque liquidaria a ciganofobia e a condição pária dos ciganos em Portugal”. Já a socióloga Olga Magano acredita que o ponto fundamental para a integração das pessoas da etnia cigana na sociedade portuguesa passa pela escolarização. “Esse aspecto permite abrir novas perspectivas de inclusão social, ao atribuir ferramentas reconhecidas para desenvolver uma participação ativa na sociedade portuguesa e junto das famílias ciganas”, explica. 

Ainda de acordo com a pesquisadora, é necessário fazer divulgação da cultura cigana na sociedade em geral, além de campanhas de luta contra a discriminação e o racismo. “Muitas destas questões ainda têm de passar, antes de mais, pela criação de condições de vida dignas para todos e todas”, avalia Olga Magano, ressaltando que “muitas famílias ciganas ainda não têm acesso a uma habitação condigna, que disponha de eletricidade e água canalizada, e muitos ciganos declaram passar fome”.

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