Urbi et Orbi
- “Esta Noite Choveu Prata” marca o seu regresso
aos palcos depois de mais de 20 anos de ausência.
O que motivou este afastamento do palco e porquê
este regresso, agora?
Nicolau Breyner - Eu fiz teatro intensivamente,
durante 20 anos, numa altura em que o teatro se fazia
todos os dias, não havendo, sequer, espaço
para dias de folga. Chegávamos a fazer três
sessões aos sábados, aos domingos e aos
feriados. A determinada altura comecei a ficar muito saturado,
era uma vida demasiado rotineira e pouco flexível.
Por outro lado, sentia-me alienado dos meus amigos. Quando
fazia Revista, entrava no teatro às 7 da manhã
e saía às 2 da madrugada. Deste modo, o
encanto do teatro foi-me passando. Entretanto, surgiu
a televisão que, por uma série de circunstâncias,
acabou por me absorver por completo. Fui dos primeiros
actores a fazer peças para televisão e depois
comecei a produzir, a realizar e a escrever. A dado momento,
já trabalhava em televisão cerca de 14 horas
por dia e, naturalmente, já nem me passava pela
cabeça fazer teatro. Há algum tempo, talvez
por eu ser muito irrequieto e ter um espírito algo
renascentista - gosto de fazer muitas coisas ao mesmo
tempo - comecei a ficar, novamente, saturado. Entretanto,
o Sérgio Azevedo propôs-me esta peça,
que tem um texto muito aliciante do Pedro Bloch e que
eu vi aos 14 anos no Villaret. Recordo-me de, na altura,
ter ficado impressionado. Tudo isto fez com que regressasse.
U@O -Esta é uma peça simples, que
fala de coisas simples e de sentimentos quase primários...
N. B. - Eu entendo que os sentimentos nunca são
primários. Pelo contrário, são aquilo
que o Homem tem de mais puro. Amar é primário,
como se diz, mas o amor é a grande mola da vida.
Os sentimentos são, na verdade, aquilo que a faz
girar: a ambição, o amor, o ódio,
o sexo. A peça fala de sentimentos, de desentendimentos
entre pessoas e de traição. E fá-lo
com amor e com humor.
"Eu entendo que os
sentimentos nunca são primários"
|
"A propósito do Pedro Bloch costumávamos
dizer que as suas peças eram verdadeiras
carpintarias de teatros"
|
U@O - Na peça, o Nicolau assume três
personagens distintos. Presumo que tenha acontecido, da
sua parte, um esforço enorme no sentido de os tentar
tipificar e diferenciar ao máximo...
N. B. - Sim. Embora no fundo sejam três
personagens óbvios, que nada têm a esconder.
São, por si só, extremamente tipificados.
Antigamente, costumávamos dizer, a propósito
do Pedro Bloch, que as suas peças eram verdadeiras
“carpintarias de teatro”. Ele é um
grande autor e também, de certo modo, um autor
estranho. No Brasil, ele escrevia peças de grande
êxito. Talvez por isso, a maior parte dos intelectuais
olhavam-no um pouco de soslaio e o grande público,
por seu turno, achava-o um autor intelectual. Ele viveu
sempre no meio desta balança e, nesse sentido,
identifico-me um pouco com ele. Ao longo da minha carreira,
acredito que sempre fui considerado um tanto comercial
pelos intelectuais. Por outro lado, tenho a sensação
de que o público sempre me viu como um actor intelectual.
Nesta peça, o texto, por si só, é
de uma beleza, uma graça e uma poesia tocantes.
O primeiro acto da peça é quase um stand-up,
em jeito de conversa com o público. O segundo acto
é uma espécie de limbo entre a comédia
e o romantismo. Por fim, o terceiro acto surge como um
drama. No início, o público ri bastante.
À medida que a peça se vai desenrolando,
sinto que as pessoas começam por rir cada vez menos,
culminando num silêncio total.
U@O - A peça tem estado em exibição
um pouco por todo o país. Esta é uma aposta
clara na descentralização cultural, de que
aliás, tanto se fala...
N. B. - Esta descentralização é
fundamental, sobretudo numa altura em que começam
a existir, no nosso País, espaços belíssimos
para representar. Quando eu fazia teatro, existiam salas
velhas, decadentes, sem condições algumas.
Neste momento, existem teatros fabulosos espalhados pelo
País, alguns deles mais interessantes que os de
Lisboa. O Teatro Cine da Covilhã, por exemplo,
é um espaço antigo, mas lindíssimo
e de uma grande dignidade.
A meu ver, é importante que as companhias cheguem
aos sítios. No entanto, e para que assim seja,
é fundamental que existam apoios. Apoiar não
passa só por financiar as companhias. Existe, por
exemplo, uma cadeia de pousadas do Estado, a Enatur, que
podia facilitar as estadias nos locais.
Quando me estreei, fiz uma tournée com a Laura
Alves que durou um ano e meio. Éramos 45 pessoas
em digressão e, mesmo assim, era rentável.
Hoje, as coisas são muito diferentes. Neste momento,
é impensável concretizar uma tournée
com mais de três ou quatro actores e meia dúzia
de técnicos.
U@O - Disse, há tempos, que o difícil
num actor não é adquirir nome, mas sim conseguir
mantê-lo. É uma postura curiosa, vinda de
um profissional com 43 anos de carreira...
N. B. - O êxito é fácil,
sobretudo no País onde estamos, em que existe um
enorme mediatismo em torno das coisas. No meu caso, o
que tem sido gratificante é ser reconhecido e abordado
por miúdos de 15 anos que acompanham a minha carreira.
É tudo uma questão de trabalho e, passo
a vaidade, de honestidade e de humildade. Aliás,
é muito importante ser humilde. Todos os êxitos,
sejam eles no teatro ou na vida e mesmo os bens materiais
são coisas meramente passageiras. Sem mais nem
menos, morremos. A vida já me ensinou que as coisas
podem desaparecer a uma velocidade tremenda. Gosto de
viver bem, claro, mas não faço disso uma
euforia. Na verdade, gosto mesmo é de estar sossegado
em Serpa, onde tenho cheiro a campo. Infelizmente, as
pessoas são aquilo que têm, hoje. Sabe, eu
já fui muito rico, hoje já não sou.
E acho que sempre tive a mesma cara, no fundo. Já
tive muito dinheiro e uma grande empresa, mas quando deixei
de ter, por muitos problemas que me foram estranhos, não
fiquei perdido.
"Descentralizar é fundamental, sobretudo
numa altura em que começam a existir, no
nosso País, espaços belíssimos
para representar" |
"Ao longo da minha carreira, acredito que sempre
fui considerado um tanto comercial pelos intelectuais" |
U@O - Tem-se dedicado muito ao Cinema. É
uma área que lhe desperta particular interesse?
N. B. - É, indubitavelmente, aquilo que
mais gosto de fazer. Gosto de namorar com a câmara
e acho que a percebo bem. Quando filmámos “Os
Imortais”, o Polansky esteve cá (a mulher
dele fazia um papel no filme) e ele dizia-me: “Tens
toda a razão, a câmara é um mistério,
ou gosta de ti ou pura e simplesmente te odeia”.
Na verdade, é quase uma coisa mágica. Quase
como num capricho, há pessoas de quem a câmara
gosta. Isso não tem nada a ver com saber fazer,
é uma questão de sorte, de telegenia. Gosto
de todo o cuidado e trabalho de pormenor que o cinema
envolve. Interessa-me a realização. Vou,
inclusivamente, realizar um filme no próximo ano,
consegui um subsídio.
U@O - E como é a vida de actor? Há
pouco falávamos da ânsia de aparecer...
N. B. - Esse desejo de ser reconhecido não
tem absolutamente nada a ver com querer e gostar de ser
actor. Costumo dizer aos meus alunos, na primeira aula,
que se ali estão para ser conhecidos, lhes posso
dar uma lista de dez maneiras para conseguir aparecer
(risos). O que importa, realmente, é sentir que
se gosta do que se faz. Muitas vezes, os cinco minutos
de fama não passam disso mesmo. As coisas constroem-se
com tempo, com solidez, são o resultado do saber
acumulado, do respeito que ganhamos das pessoas, de muitas
desilusões, falta de pachorra, zangas, alegrias,
fracassos. Para que haja solidez, é necessário
dar-se um passo de cada vez. De resto, a vida de actor
não é fácil.
"Tenho a sensação
de que o público sempre me viu como um
actor intelectual"
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"O Teatro Cine da Covilhã é um
espaço antigo, mas lindíssimo e de
uma grande dignidade"
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U@O - É uma pessoa fácil de se
lidar?
N. B. - Tenho mau-feitio, por vezes, sobretudo
a trabalhar. Sou muito exigente e a falta de profissionalismo
irrita-me. Gosto de saber o que vou fazer, cumprir horários,
encontrar uma certa estrutura no trabalho. No entanto,
sou um brincalhão-nato. Sou conhecido por brincar
muito em cena. Porém, quando estou a dirigir tenho,
mesmo, algum mau-feitio. Muitas vezes, grito e exalto-me,
mas as pessoas que trabalham comigo já sabem que
não passa disso.
Outra característica é que tenho horror
ao frio: Sou profundamente infeliz e não consigo
fazer absolutamente nada quando tenho frio. Farto-me de
dizer disparates, fico extremamente irritado. De resto,
tenho apenas algumas manias pequenas: gosto de ir aos
mesmo sítios. Embora odeie a rotina, existem coisas
em que sou rotineiro: tomo sempre café no mesmo
sítio.
U@O - A dada altura, o Nicolau candidatou-se à
Câmara Municipal de Serpa. O que o motivou a tentar
ingressar na vida política?
N. B. - Não se tratou disso. A autarquia
não é vida política. Quanto a mim,
a gestão autárquica deveria estar completamente
separada da política. Eu fui candidato por um partido,
mas independente, porque achei que poderia fazer algo
por aquela terra. Gosto muito de Serpa, fui lá
criado, tenho lá a minha casa e tenho pena que
esteja a atravessar tantos problemas, como o desemprego,
à semelhança de todo o Alentejo. Acredito
que alguns desses problemas poderão ser minimizados
e pensei que poderia intervir. A vontade popular não
o desejou e acabei por perder por uma ninharia de mil
e 200 votos. Na verdade, não iria tirar dali nenhuma
notoriedade, porque já a tinha. Também não
iria retirar grande dinheiro, porque era pessimamente
mal pago. Aliás, o facto de ter perdido não
alterou, em nada, a minha vida. Continuo a ir a Serpa
quase todos os fins-de-semana e sempre que tenho férias.
Ver também: "Choveu
Prata no Teatro Cine"
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