Urbi @ Orbi
– Do jornalismo à comédia, como é
que foi este trajecto?
Ricardo Araújo Pereira – Eu não
creio bem que se possa dizer que foi do jornalismo à
comédia porque, embora eu tenha feito comunicação
social, apercebi-me cedo que não queria ser jornalista,
pelo menos no sentido estrito. O jornalismo que eu acabei
por fazer durante algum tempo foi um jornalismo particular,
foi no “Jornal de Letras”, é um jornalismo
cultural sobre livros, escritores, pintores, temas que
me interessam. Tive uma má experiência anterior
de um jornalismo mais geral relacionado com aquelas coisas
do costume, como ir atrás do Cavaco, não
sei para onde, para saber o que é que ele pensa.
Então, não chegou a ser bem isso, porque
quando acabei a faculdade fiz o estágio no “Jornal
de Letras” e mais ou menos ao mesmo tempo recebi
um convite das Produções Fictícias
para trabalhar lá.
U@O – E aí era mais aquilo que gostavas?
R.A.P. – Sim. Eu sabia que gostaria de
escrever, mas é difícil viver da escrita,
embora se possa dizer que os jornalistas vivem da escrita,
mas um escritor a conseguir viver da escrita não
são muitos em Portugal que o consigam fazer. No
entanto, é possível viver da escrita humorística.
U@O – Essa opção pelo jornalismo
cultural, era já a pensar que poderias desenvolver
uma escrita mais criativa, não tão limitada
àquelas regras do jornalismo normal?
R.A.P. – De facto essa vertente do jornalismo
permitia-me escrever de outra maneira, mas confesso que
era mais motivada pelo facto de o outro tipo de jornalismo
mais convencional ser menos interessante para mim, ao
contrário do tipo de jornalismo no “Jornal
de Letras”.
U@O – Como é que começou
o “Gato Fedorento”?
R.A.P. – O “Gato Fedorento”
enquanto programa de televisão teve origem nuns
pequenos sketches que o Zé Diogo Quintela e eu
fazíamos no programa “O Perfeito Anormal”.
Houve uma altura em que o Fernando Alvim, autor do programa,
nos convidou para fazer uns sketches porque tinha visto
um espectáculo nosso de stand up. Eram coisas que
basicamente não tinham rigorosamente nada a ver
uma com a outra, mas o Alvim é um tipo meio maluco
e fizemos os sketches dentro desse programa, que tiveram
algum êxito, pelo que os directores da “SIC
Radical” nos convidaram para fazer um programa de
sketches autónomo. Nessa altura o Zé Diogo
e eu achámos que era óbvio que íamos
fazer um programa com o Miguel e o Tiago, que eram nossos
amigos e colegas de trabalho, com os quais nós
já tínhamos um sonho antigo de fazer uma
coisa destas.
U@O – Mas já tinham o blog com o
mesmo nome. Houve alguma continuidade do blog para o programa
televisivo?
R.A.P. – Tirando o nome e os autores não
há muita continuidade. O blog trata muito de coisas
da actualidade e isso foi coisa que nunca tivemos no “Gato
Fedorento” porque as ligações à
realidade eram menos importantes para nós. Nós
fizemos parte da equipa que escreveu o “Programa
da Maria” e esse programa visto hoje tem tantas
referências a uma actualidade comezinha daquela
altura, que tinha a ver com as personagens do “Big
Brother”, por exemplo. Coisas que actualmente já
não nos lembramos, que podia ter interesse fazer
piadas com aquilo, mas hoje em dia já não
fazem sentido.
"O programa é
muito sobre coisas do dia a dia"
|
“Apercebi-me cedo que não queria ser
jornalista”
|
U@O – Tens consciência que o “Gato
Fedorento” começa a ganhar um destaque histórico
na comédia nacional. Como é que encaras
isso?
R.A.P. – Nós ainda não tivemos
muito tempo para pensar nisso, nem sequer para nos apercebermos
disso porque vivemos no nosso pequeno mundo. Eu confesso
que não saio muito de casa, trabalho muito em casa
e não tenho muito oportunidade de constatar essa
repercussão, embora saiba que ela existe. Mas não
temos muito tempo para pensar nisso, nem sequer conseguimos
muito bem ter a noção do que é que
tal coisa significa. No outro dia estava uma pessoa a
dizer-me que nós íamos ser uma espécie
de “Abelha Maia” das pessoas desta geração,
no sentido em que daqui a dez anos as pessoas vão
dizer – “houve lá lembras-te de uma
coisa que havia há uns anos que era o Gato Fedorento,
uns gajos que diziam ah e tal” –, se isso
acontecer é muito lisonjeiro para nós.
U@O – E na rua, como é que és
tratado?
R.A.P. – Para mim, que sou um bocado tímido,
é um bocado embaraçoso, mas as pessoas são
sempre simpáticas e não custa nada, antes
pelo contrário. Apesar de ser uma coisa intensa
e, às vezes, pode calhar não estar particularmente
bem disposto ou ir com pressa, mas a perspectiva sobre
isso é as pessoas não têm culpa que
eu esteja mal disposto, ou vá com pressa, ou ser
a 17ª pessoa que me pede um autógrafo hoje.
Eu tenho que a tratar como se fosse a primeira, porque
não há razão nenhuma para a tratar
mal. Mas nem sequer tenho de que me queixar porque nunca
me trataram de uma maneira desagradável, muito
pelo contrário.
U@O – De onde é que vem tanta imaginação,
onde é que se inspiram?
R.A.P. – O programa é muito sobre
coisas do dia a dia. Eu acho que uma das razões
porque as pessoas se relacionam com o programa é
porque ele fala das coisas da vida de todos os dias, dos
políticos em geral, dos jornalistas, das pessoas
que estão na rua, do discurso das pessoas. Sobretudo
o que nos interessa é a linguagem, o discurso das
pessoas é muito interessante porque revela muito
para além daquilo do que as pessoas estão
a dizer, outras esconde ou tenta esconder, e com essa
tentativa também revela outras coisas.
U@O – Vocês quatro já trabalham
há algum tempo juntos, como é a vossa relação?
R.A.P. – É óptima e seria
insuportável se assim não fosse porque temos
que passar muito tempo juntos. Agora todos os fins-de-semana
temos estado fora e estar fora de casa com as mesmas três
pessoas, se não houver de facto uma relação
boa é insuportável. Andamos imenso de um
lado para o outro e não nos queixamos de nada,
tem sido muito divertido fazer isto.
U@O – Com certeza também têm
alguns desacatos?
R.A.P. – Nós até costumamos
integrar esses desacatos no nosso trabalho. Justamente
porque a relação é saudável
é possível haver desacatos. Só quando
uma relação não aguenta desacatos
é que as pessoas os tentam evitar.
"O nosso primeiro objectivo é fazer
rir" |
"Gostaria de mais tempo para dar largas à
criatividade" |
U@O – Porquê os Fonsecas e os Meireles?
R.A.P. – Boa pergunta. O facto de as personagens
partilharem o mesmo nome deve-se ao seguinte: quando se
está a escrever um sketch, uma das principais dificuldades
que tivemos era dar um nome a uma personagem, porque se
ele é pintor não vamos dizer – “ó
senhor pintor” – porque é uma coisa
um bocado infantil. Supondo que estamos a fazer um sketch
sobre um pintor, podemos chamar-lhe José Trincha
porque para pintar usa pincel, o que não é
muito engraçado e dá muito trabalho a inventar.
Outra hipótese é chamar uma coisa do género
João Gonçalves, mas chamar a um João
Gonçalves e a outro José Quintela pode levar
as pessoas a pensar – “será que este
Quintela tem a ver com outro Quintela que era pintor?”.
Isto pode gerar ruído no sketch, o que não
nos interessa, pois queremos que a atenção
das pessoas esteja focalizada naquilo que está
a acontecer. Também optámos por fazer o
mesmo nome porque a repetição tem um potencial
cómico, pelo facto de as personagens terem o mesmo
apelido e às vezes no mesmo sketch estarem todas
a tratarem-se pelo mesmo nome.
U@O – Isso também permite ao público
uma memorização?
R.A.P. – Isso é verdade. Quando
fizemos isso não foi com essa intenção,
mas de facto as pessoas viam os Fonsecas ou os Meireles,
e o facto de o apelido ser comum ajudou a popularizar.
U@O – Quais são as tuas referências
em termos humorísticos?
R.A.P. – A referência portuguesa
principal é o Herman. Depois nos sketches, os Monty
Pyton continuam a ser insuperáveis. O Rowan Atkinson,
mais conhecido por Mister Bean, os Smith and Jones e também
o Big Train, uma série que passou há pouco
tempo em Portugal, são muito bons, mas também
esses têm referência dos Monty Pyton. Depois
na escrita, o Woody Allen, o Mark Twain, o Miguel Esteves
Cardoso, mesmo o Camilo Castelo Branco e o Eça
de Queirós têm páginas com uma grande
qualidade humorística.
U@O – Qual é o tipo de sketches
que te dá mais gozo fazer?
R.A.P. – É difícil falar
em tipo de sketches porque nós não repetimos
personagens, o “gajo de Alfama” ou o “homem
a que aconteceu não sei quê” apareceram
uma vez e nunca mais voltaram. Um dos que nos deu mais
gozo fazer foi o “gajo de Alfama” porque nós
riamo-nos a meio e isso faz daquilo uma coisa muito divertida
porque o facto de não nos podermos rir ainda dá
mais vontade de o fazer. É difícil manter
a compostura e quando isso acontece torna-se ainda mais
divertido do que já é.
U@O – Muitos dos vossos sketches tratam
situações de jornalismo, qual a razão
para isso?
R.A.P. – Porque é um meio muito
forte e acessível às pessoas. O trabalho
dos pedreiros, por exemplo, não está à
disposição das pessoas do mesmo modo e intensidade
como o trabalho dos jornalistas, uma vez que é
um trabalho público. Depois cada profissão
tem o seu tipo de discurso e o discurso dos jornalistas
é interessante e tem um potencial humorístico,
até porque é aliciante desmontá-lo,
assim como o dos políticos.
U@O – Quais são os temas que preferes?
R.A.P. – É difícil de dizer
porque nós não partimos para os sketches
por tema. Há uma ideia que nos ocorre e é
engraçada e depois constatamos que ela se insere
num determinado tema, mas à partida esse nunca
foi o nosso objectivo.
U@O – Qual é o objectivo do vosso
humor?
R.A.P. – O nosso primeiro objectivo é
fazer rir. Aparentemente conseguimos mais algumas coisas
além disso, o que nos agrada imenso, mas por muito
que isso me agrade nós não nos sentimos
com uma função social. Como não tentamos
fazer rir com palavrões ou escatologia e as nossas
obsessões não são desse nível,
é possível que além de fazer rir
aquilo contribua para mais qualquer coisa.
U@O –E esse qualquer coisa está
nos planos ou é uma consequência?
R.A.P. – É uma consequência.
Só está nos nossos planos na medida em que
as pessoas que estão a fazer aquilo somos nós,
ou seja, quem está a fazer o humor são pessoas
cujas preocupações são aquelas.
U@O –Vocês põem muitas pessoas
a rir. Também te ris com o que fazem?
R.A.P. – Não vou mentir, não
vou dizer ah e tal não rio nada e não gosto.
Se eu não gostasse deixava de fazer. Portanto há
muitas coisas que fazemos que eu vejo com gosto e acho
graça e doutra maneira não faria sentido.
U@O – Qual a diferença entre estar
em palco e gravar?
R.A.P. – É uma diferença
muito grande. Logo aquela diferença óbvia
da forma como aquilo sai, pela pressão que temos
em palco, onde tem de sair bem à primeira, e não
temos quando estamos a gravar porque podemos fazê-lo
várias vezes. Depois há outra questão
que se relaciona com o facto de nós não
termos nenhuma formação como actores e no
palco isso nota-se ainda mais, porque enquanto na televisão
podemos aparecer em planos mais pequenos, no palco as
pessoas estão sempre a ver-nos o corpo todo. Para
mim, que me movimento como um “gigantone”
de Cinfães, é muito mais difícil
fingir que sei representar.
"Não me desagrada
nada o palco"
|
“Os sítios onde vamos têm esgotado
sempre”
|
U@O – Qual te agrada mais, o palco ou o
estúdio?
R.A.P. – Não consigo escolher porque
cada um tem os seus encantos. Já me começa
a agradar o palco, embora isto tenha sido bastante cansativo
e me apeteça fazer coisas diferentes. Para mim
que não sou actor é um bocado aborrecido
a repetição dos mesmos textos, enquanto
que na televisão estamos sempre a criar coisas
novas. Mas não me desagrada nada o palco. Aquele
confronto com o público, que até certo ponto
é doloroso, também é agradável
ao mesmo tempo.
U@O – Como é que está a correr
a digressão?
R.A.P. – Muito bem, surpreendentemente.
Os sítios onde vamos têm esgotado sempre,
como o coliseu do Porto, que é a maior sala de
espectáculos do país com três mil
lugares e esgotou sempre. Esgotámos o Luisa Toddi
em Setúbal por três dias, esgotámos
um pavilhão em Loulé que levava três
mil pessoas. A receptividade do público tem sido
espantosa.
U@O – Em tua casa há muito humor?
R.A.P. – Há algum, eu não
sou carrancudo. Neste momento já tenho duas filhas,
uma que nasceu agora e outra de ano e meio - já
sou pai de muita gente. As miúdas desorganizam-me
tudo e onde há crianças com essa idade é
dificil haver ordem.
U@O – Além do “Gato Fedorento”
também escreves para as Produções
Fictícias, o que é que gostas mais?
R.A.P. – Eu gosto mais de escrever do que
de representar, sem dúvida. Mas o “Gato Fedorento”
dá muito gozo fazer porque é uma coisa em
que eu tenho completa liberdade. A escrever tenho constrangimentos,
por exemplo, o Herman tem de falar sobre a actualidade
e falar dela de uma determinada forma porque deve captar
o maior número de pessoas possível, os textos
que fazemos para a Maria Rueff no jornal “A Bola”
são sobre futebol. No “Gato Fedorento”
não há tema, não há preocupação
comercial e , basicamente fazemos o que nos apetecer.
U@O – Uma das tuas referências é
o Herman. Como é escrever para a tua própria
referência?
R.A.P. – É espantoso. Obviamente
que eu nunca esperava que isto sucedesse, quando com dez
anos via “O Tal Canal”. Lembro-me de o ver
muito entusiasmadamente com essa idade, e ainda hoje sei
textos de cor. Evidentemente que nessa altura nunca suspeitava
que 13 anos depois estaria a escrever para o Herman e
isso, sobretudo os primeiros contactos, foi muito emocionante.
U@O – O nosso país tem bom material
para fazer humor?
R.A.P. – Eu acho que sim, todos de um modo
geral têm. No nosso, como nós nos conhecemos
melhor e sabemos as nossas fraquezas e forma particular
de sermos aldrabões ou espertos, por aí
fora, tudo isso é muito passível de ser
satirizado.
U@O – Como vês o crescimento do humor
em Portugal, qual achas que é a sua importância?
R.A.P. – Eu acho que o humor é muito
importante e pelos vistos tem muita importância
do ponto de vista comercial, senão não haveria
este investimento tão forte. Não há
nenhum canal que não invista no humor, muitos programas,
como os da tarde e da manhã, fazem questão
de ter uma parte humorística. O crescimento humorístico
pode não vir acompanhado da qualidade, pode haver
muitos “Prédios do Vasco”, “Malucos
do Riso” e “Batanetes”, que são
programas quase iguais, às vezes até os
actores são os mesmos e as próprias anedotas
se repetem. E isso não quer dizer que tenha havido
uma melhoria de qualidade, mas quanto mais pessoas houver
a fazer humor, maior a probabilidade de haver várias
tendências diferentes.
U@O – E em termos sociais achas o humor
importante?
R.A.P. – Muito importante, desde os tempos
de Gil Vicente que é usado como arma de critica
e sátira social com um papel particularmente forte.
Por uma razão qualquer, se uma critica for feita
de forma séria pode ser bastante certeira, mas
talvez não faça tanta mossa se for a mesma
critica codificada num registo humorístico que,
além de criticar, faz as pessoas rir. Isso provoca
outro tipo de reacção talvez mais violenta
e eficaz. Mas há outros factores que contribuem
para que o humor seja importante do ponto de vista social,
no sentido em que o humor serve para tirar peso às
coisas. Não é por acaso que nos funerais
se contam muitas anedotas, porque aquilo é uma
coisa dolorosa e com a ajuda do humor é possível
retirar peso àquele problema e torná-lo
mais fácil de suportar. Eu gosto muito dessa característica
porque através do humor os problemas tornam-se
mais humanos e isso é uma coisa que eu prezo muito.
U@O – Projectos para o futuro?
R.A.P. – Neste momento nem sequer sei se
temos, estamos a fazer isto e muito envolvidos nesta onda
em que há muita coisa para fazer. Mas há
aqueles projectos de longo prazo, escrever qualquer coisa
de maior fundo. Aquilo que sempre me agradou mais foi
a escrita, aquela comunicação que há
entre escritor e leitor, como que telepaticamente, agrada-me
bastante e gostava de experimentar esse registo.
Ver também
sobre o mesmo assunto
|