|
|
|
Contrabando
Um museu vivo
Seja qual for o ângulo
com que se tente abordar a vida nas regiões raianas, em
qualquer parte do País, a narrativa foge, invariavelmente,
para aquilo que foi durante gerações o principal
sustento das populações no limiar da fronteira:
o contrabandismo.
Por
A.S.S. e R.P.S.
NC/Urbi et Orbi
|
|
"Tó Coxo"
defende o contrabando como forma de cultura
|
Seja qual for o ângulo com
que se tente abordar a vida nas regiões raianas, em qualquer
parte do País, a narrativa foge, invariavelmente, para
aquilo que foi durante gerações o principal sustento
das populações no limiar da fronteira: o contrabandismo.
Até porque, defende, Tó Coxo, "a prática
do contrabando já faz parte da cultura da Raia".
A história parece dar-lhe razão. Antigamente sancionado
como um crime, o contrabandismo é hoje tema de filmes
e séries de televisão depois de ter sido explorado
de forma romântica por vários escritores desde o
início do século XX.
"O contrabando enriqueceu muita gente desde Quadrazais até
Aldeia da Ponte e por essa fronteira fora", lembra o comerciante.
"A primeira grande fase de riqueza foi durante a II Guerra
Mundial. A era do minério. As pessoas até passaram
a beber cerveja". Mas essa abundância tão depressa
chegou como partiu. "As pessoas começaram a poupar
e não investiram com medo que o dinheiro fugisse",
explica Coxo. O contrabando continuou, no entanto, até
à Revolução de Abril, para acabar por completo
com a entrada de Portugal na CEE em 1986.
"Se for preciso, faz-se outra vez"
Agora fala-se em criar um Museu do Contrabando no concelho do
Sabugal. "Mas o que é que se pode meter num museu
desses?", questiona. "Não há nada palpável
para reunir de forma a constituir um conjunto de testemunhos
desse tempo". Toda esta região, acrescenta, "é
por si só um museu do contrabando. Um museu vivo. Feito
de histórias que hão-de passar de pais para filhos".
Assumido ex-contrabandista, Tó Coxo recusa a definição
do contrabando como um crime. "O contrabandista nunca roubou
nada a ninguém. Sempre comprou a mercadoria que vendeu.
Fosse café, volfrâmio ou tabaco. Além disso,
a gente só o fazia para conseguir viver. Os tempos a isso
obrigavam". O único prejudicado era, na sua opinião,
o Estado. A mesma entidade que os colocou na necessidade de contrabandear
mercadorias: "Era uma época de fome e privações.
O Salazar era como uma galinha que tapava a miséria do
povo com as asas e só deixava a sua cabeça de fora".
As pessoas foram obrigadas a passar a fronteira "a salto"
e a emigrar para as colónias e América do Sul.
"Os que ficaram tiveram que fazer pela vida", comenta
António Afonso, que chegou a ter a mala feita para "zarpar"
para França mas desistiu à última hora.
"A gente passou muita fominha. E às vezes tínhamos
que roubar umas batatas para ter o que comer", completa
Rosa Malhado, 70 anos, esposa do forneiro. Agora a necessidade
já não o justifica, mas, avisa Coxo, "se for
preciso volta a fazer-se. Desde que não seja droga, pessoas
ou armas e que não envolva roubar ou matar, o contrabandismo
não prejudica ninguém."
Laços fortes com Espanha
Deste mercado negro que se desenvolveu, essencialmente, até
ao terceiro quarto do século passado, nasceu outro fenómeno.
O da intimidade com o outro lado da fronteira. "Aqui todos
falamos espanhol e a fronteira é apenas uma linha num
mapa", afirma Domingos Malhadas, presidente da Junta de
Vale de Espinho. Até o velho ditado que reza "de
Espanha, nem bons ventos nem bons casamentos", acaba por
não fazer sentido. Há casos de Espanhóis
que "deram o nó" com portuguesas e vice-versa.
Gente que tem família de ambos os lados da fronteira.
Por isso, e numa semana de rescaldo da Cimeira Ibérica,
que reuniu em Sintra os chefes de Governo dos dois países,
António Guterres e José Maria Aznar, faz pouco
sentido para os raianos que se assinem protocolos de cooperação
transfronteiriça. "Isso é uma coisa que já
fazemos há anos", revela Joaquim Dias, presidente
da Junta de FÓios. Segundo o dirigente, cuja freguesia
até é geminada com Eljas, uma localidade da raia
espanhola, "os laços de amizade já vêm
do tempo dos nossos avós e as diferenças entre
as aldeias de ambos os lados é que eles têm mais
apoio do Estado do que nós". |
|
|