Apelo aos pedagogos da futura
escola médica com historinha pelo meio
A minha história é insignificante e dilui-se na
infinidade de histórias que todos os utentes do Serviço
Nacional de Saúde têm para contar. Algumas, infelizmente
excepções à regra, são elogiosas
para os médicos e restante pessoal. Mas a maioria, divergindo
nas circunstâncias e nos cenários, coincidem no
desprezo pelo sofrimento do outro - que, por acaso, até
é a justificação do salário dele
- na frieza, na falta de pontualidade, no tom autoritário
com que prescreve tratamentos e determina a data da próxima
consulta. Mas volto à minha insignificante história.
Um acidente ridículo, como qualquer acidente que se preze.
Um olho traumatizado por uma pancada violenta. Na urgência
não se viu nada que justificasse incomodar o Senhor Doutor
Oftalmologista, que estava de prevenção (está
em casa, mas de serviço). Mas é chato tirar o Senhor
Doutor do aconchego do lar - mesmo estando a facturar - só
para ver um olho esborrachado. Assim, marcou-se consulta para
o dia seguinte. O dia seguinte chegou, com dores, uma noite mal
dormida, o susto de ficar com um olho a menos. Chegada a hora,
entrei. Com um gesto, apontou uma maquineta. Deduzi que era para
me sentar à frente da dita e apoiar o queixo numa estrutura
metálica mesmo em frente a umas lentes e umas luzes -
tudo muito tecnológico - e acertei na dedução,
pois ele não me censurou. Limitou-se a sentar-se do outro
lado da maquineta e espreitar pelas lentes para dentro dos meus
olhos. E, para dar uma dimensão lúdica à
coisa, começou a assobiar os Jingle Bells. Informo que
faltavam uns dias para o Natal e, convenhamos, o ambiente era
propício. Seria estranho se se pusesse a assobiar a Internacional
ou O Bacalhau Quer Alho. Aí sim, eu era capaz de ficar
ofendido. Agora, os Jingle Bells, tá bem. Findo o exame
(calculo que era disso que se tratava) encheu-me o olho com uma
pomada e mandou-me ler (com o olho avariado e besuntado) as letras
de um daqueles quadros que os oftalmologistas têm nos consultórios.
Aqui, a coisa ficou desagradável. Primeiro, o quadro era
luminoso e estava desfocado; segundo, o gabinete estava muito
iluminado, o que diminuía o já de si parco contraste
entre as letras e o fundo; terceiro, o meu olho estava cheio
de uma mixórdia translúcida, que resulta muito
bem nos quadros do Constable - cheios da típica neblina
britânica - mas que naquelas circunstâncias não
ajudava grande coisa; e, em grand finale, perante a minha incapacidade
em distinguir um P de um F, ou um U de um V, disparou a seguinte
pergunta: já via assim mal, antes?. Esclareço que
a minha acuidade visual é excelente: um dos meus passatempos
favoritos é ler as letras pequeninas dos contratos das
companhias de seguros, a um metro de distância - não
estou a armar, é mesmo verdade... Para concluir, mandou-me
para o corredor para a enfermeira me fazer um penso no olho.
A sala de tratamentos estava arrumada e não valia a pena
ir para lá por tão pouco. E marcou-me consulta
para daí a dois meses. E então eu disse à
minha mulher: agora vamos procurar um médico? Ele ouviu.
E até hoje fiquei com a impressão que não
gostou.
Pedagogos da futura escola médica
da UBI. Pedagogos de todas as escolas médicas existentes
ou a existir: por favor, ensinem os futuros médicos a
ser gente! Não descurando as preocupações
científicas, a procura da excelência no ensino e
na investigação, façam o esforço
de integrar na estrutura curricular algo como aquilo que no secundário
é ensinado sob o título de educação
cívica.
Convém que os estudantes, futuros médicos, deixem
de vez a triste ideia de serem uma espécie de feiticeiros,
xamãs iluminados nos mistérios do Índice
Nacional Terapêutico e do CID-10, que do alto da sua arrogância
místico-científica fazem o favor de nos atender
nas consultas e nas urgências hospitalares. Façam
com que os futuros Doutores não nos vejam como um mecanismo
com insuficiências funcionais, mas como gente. Que quando
os procuramos não é para contar anedotas ou ir
beber um copo, mas porque estamos mal. E, tanto quanto me parece,
o Juramento de Hipócrates ainda está em vigor.
Quanto ao meu pequeno drama:
efectivamente encontrei um médico digno do título.
E já consigo ler de novo as letrinhas dos contratos dos
seguros. Obrigado por se preocuparem! |