Urbi@Orbi – “Madrugada na tua alma” é o terminar de uma trilogia composta pelas suas últimas obras?
Gabriel Magalhães – Os três romances não formam uma trilogia pura uma vez que são distintos uns dos outros, mas entre eles há um aspeto comum que é uma vontade de dar um horizonte daquilo que nós somos enquanto portugueses.
Nos dois anteriores livros isso era visto, no primeiro mais no âmbito da literatura, com a história de uma professora de letras, no segundo era mais na esfera pessoal e cada pessoa a encontrar o seu caminho. No terceiro livro é mesmo o País e a forma como podemos voltar a ter um horizonte.
Urbi@Orbi – Deixa um pouco de lado a temática da morte, mas ainda assim, descreve um conjunto de relações pessoais e uma sociedade quase à beira do fim. Porquê?
Gabriel Magalhães – Em Portugal estamos num momento em que nos sentimos emparedados. A ideia foi que este livro funcionasse como uma janela e, a partir dessa janela, nós podermos ter uma paisagem para sermos portugueses. Essa sensação que diz de fim é muito importante hoje em dia. Nós temos a impressão que a Europa está a deixar de ser o que era, que a prosperidade está a deixar de ser o que era e que as nossas próprias vidas também já não vão poder ser o que eram. É um pouco contra essa sensação fúnebre que o livro se escreve. Isto é, trata-se de transformar o fim num novo começo.
Urbi@Orbi – Este é um livro sério sobre Portugal, poderá a literatura ajudar a salvar alguma coisa?
Gabriel Magalhães – Pode e aliás acho que sempre teve esse papel em Portugal. A nossa maneira de renascermos passa pela literatura. Nesse sentido, quando o País se encontra numa situação de quase morte, os cuidados intensivos, normalmente são literários.
Acho que o livro tem uma certa leveza e um certo otimismo. Isto é, havendo um diagnóstico da realidade, que é preocupante, também há uma enorme dose de esperança. O protagonista vai acabar por encontrar o seu caminho e fica o desafio para o leitor também encontrar o seu caminho. Este é um livro para abrir portas e como disse, na situação em que nos encontramos, de emparedados, serve para abrir uma janela, uma esperança, por isso acho que é um livro otimista.
Urbi@Orbi – Por ser um viajante diz ter a noção que Portugal, ao longo de mais de oito séculos de história, tem morrido, mas também tem conseguido renascer. Como explica isso?
Gabriel Magalhães – Essa é uma das nossas caraterísticas como País. Na nossa aventura imperial, tivemos três impérios cujo projeto morreu, mas acabou por renascer noutro lado. Primeiro foi a oriente, passámos em seguida para o Brasil e depois para África. No final passámos para a Europa, com um projeto de renascimento no Velho Continente. Esse projeto europeu, esse sonho, também hoje está em crise e agora temos de ser capazes de criar um novo renascimento, faz parte da nossa identidade, essa capacidade de renascer e temos de ser capazes nos próximos anos.
Urbi@Orbi – E esse renascimento será para que paragens?
Gabriel Magalhães – Um aspeto muito importante passa por recuperarmos uma parte importante da nossa identidade, que é o nosso espírito. É um espírito que não devemos confundir com fanatismo, não se trata de fanatismo religioso, mas sim de sermos capazes de descobrir uma espiritualidade que, em Portugal, quase sempre, nos seus melhores momentos viveu em liberdade.
Esse é um aspeto interior que torna cada português noutra pessoa e torna cada português mais capaz. Como País penso que não é evidente, nesta altura, que sem dúvida o que se diz é o que se está a fazer, em parte, mas temos de fazer mais qualquer coisa para voltar a retomar essa capacidade que cada português tem para se encontrar consigo mesmo.
Para além disso, é também muito importante recuperar o interior do País. Hoje em dia estamos novamente a ser colocados na margem desprezada de Portugal. Uma boa medida era reorganizar o País dando ao interior um novo valor.
Urbi@Orbi – Tem dito que os livros não são autobiográficos, mas quando está a escrever recorre às suas experiências ou a relatos de outros?
Gabriel Magalhães – Toda a literatura é uma investigação da verdade através da imaginação. Se na ciência nós procuramos a verdade através das experiências, do estudo, da observação; na literatura procuramos essa mesma verdade através da imaginação. Isto é muito curioso porque acaba por ser um processo válido. Isto é, imaginando o que poderia ser, nós também estamos a compreender melhor o que é. Imaginando que poderia existir ficamos a saber melhor o que existe. Neste trabalho uso experiências que me chegam de vários locais, mas também da imaginação. Esta imaginação tem um grande papel, quer dizer, nos meus livros não tenho a preocupação de usar experiências vividas, mas sobretudo, imaginar, a imaginação é uma energia.
Urbi@Orbi – Um bom escritor tem de ser, um bom sonhador?
Gabriel Magalhães – Sim é mesmo isso. Um bom sonhador consegue, de alguma forma, desvendar aspetos da realidade que estavam escondidos. A escrita é uma ciência da imaginação.
Urbi@Orbi – Ainda no aspeto autobiográfico, este trabalho fala muito dos lugares por onde o professor passou. Angola, Portugal, Espanha…
Gabriel Magalhães – Isso é mais o gostar desses sítios. Os sítios onde estive são reproduzidos o melhor possível. Mas em relação às pessoas que conheci, tenho a preocupação de as manter anónimas. Nos meus livros tive a preocupação de não identificar nenhuma personagem com uma pessoa na realidade. Não faço isso, não gosto de fazer isso. No livro apenas a personagem do “avô” corresponde a uma pessoa, que é precisamente o meu “avô”, em que lhe quis prestar uma homenagem.
Urbi@Orbi – Num período em que se multiplicam edições de livros, diz que é cada vez mais difícil publicar em Portugal, como explica esta “contradição”?
Gabriel Magalhães – Vivemos num momento de grande empobrecimento espiritual e esse empobrecimento não se reflete tanto nas questões da prática religiosa, reflete-se no esvaziamento da ciência, no esvaziamento das esferas artísticas, num empobrecimento muito grande da vida social, que nós também sentimos na atividade pública. É nesse sentido que a imensa maioria dos livros que se publicam hoje não vão ter qualquer relevância para o futuro. Muitos dos trabalhos que fazemos hoje não terão qualquer relevância para o futuro. Eles têm visibilidade nesta altura, mas os séculos vindouros terão a sensatez de se esquecer da espuma toda da nossa época.
O leitor tem de saber defender-se desse fenómeno e tentar descobrir os livros e os autores que têm verdadeiramente importância. Aliás, no conjunto da nossa vida temos de fazer um grande esforço para encontrar aquilo que é importante porque tudo o que nos rodeia nos empurra para tudo o que valorizamos o que não é essencial e depois acabamos por ficar destruídos e incompletos, isso porque o próprio meio social nos analisa, nos engana, nos conduz para as coisas que não têm verdadeiro valor. Então, se cada pessoa for capaz de evitar essa floresta de enganos e conseguir chegar ao que é essencial, essa pessoa encontrou o seu caminho.
Urbi@Orbi – São portanto “enganosas” essas publicações que fazem os destaques nas livrarias?
Gabriel Magalhães – É engraçado o caso de livros de autoajuda, por exemplo. Toda a literatura é de autoajuda, isto é, "Os Lusíadas" são de autoajuda, "A Mensagem" é de autoajuda, só que, precisamente porque é literatura a sério, não a chama de autoajuda. Veja-se o quanto enganoso é isto, ter um manual de autoajuda, mas se é de autoajuda não preciso desse livro. No próprio nome nota-se um pouco a falsidade dessa literatura. Esses livros não ajudam nada, sou eu que me vou ajudar a mim próprio.
É verdade que toda a literatura é de ajuda. Se nos quisermos ajudar é ler o Pessoa, o Camões, entre outros.
Urbi@Orbi – Já pensa nos livros futuros?
Gabriel Magalhães – Estou já a imaginar e a trabalhar em novas publicações. No próximo ano é provável que publique mais dois livros, na área do ensaio. Para além desses dois livros estou também a pensar num de ficção. Os ensaios passam, um pela espiritualidade, outro pela reflexão do que é Portugal.