Urbi@Orbi – O que é afinal a realidade ibérica?
Gabriel Magalhães – É uma realidade complexa e fascinante na qual nós portugueses estamos e estamos nessa condição com personalidade própria. De qualquer forma, a península é um pequeno universo, é um mundo fascinante que existe e que faz esta realidade ibérica onde nós estamos inseridos como portugueses.
Urbi@Orbi – Mas é um universo de diferenças, então?
Gabriel Magalhães – Uma das características da Península Ibérica é a sua multiplicidade. Isso faz dela um laboratório experimental do que é o mundo inteiro, a variedade da península, as suas contradições onde as suas complexidades reflectem as complexidades do mundo. Tenho muito esta ideia da península como um laboratório onde podemos ver no espaço peninsular um pouco do que acontece no espaço mundial. Esta ideia pode parecer um pouco arriscada, mas não é. Por exemplo, antes da II Guerra Mundial houve a Guerra de Espanha (1936-1939) e logo aí o mundo seguiu todo o percurso deste país e ainda hoje segue a evolução económica e política da Espanha, isto porque ela poderá indiciar aquilo que será o futuro do Ocidente.
Urbi@Orbi – Mas parece que Portugal não goza de tamanha atenção, porquê?
Gabriel Magalhães – Portugal tem uma personalidade própria. A parte portuguesa é sempre uma parte escondida. O trabalho português, que é um trabalho muito importante, faz-se discretamente. Exemplo disso, os nossos Descobrimentos que se fizeram numa certa discrição, um grande poeta como o Camões, que existiu escondidamente e no caso do Pessoa, que durante a sua vida não foi conhecido.
Faz parte da história portuguesa este perfil de discrição que ainda hoje temos e que não nos diminui. Esta é a nossa maneira de estar.
Urbi@Orbi – A imagem que dá de Espanha nos seus estudos é a de um mosaico territorial onde estão presentes diversas identidades, já de Portugal, um espaço mais homogéneo. Isto tem influência na ligação dos dois países?
Gabriel Magalhães – O facto de Espanha ser um mosaico de diversidades não quer dizer também que esta não tenha uma personalidade específica, uma personalidade que é muito bem projectada no exterior. A Espanha é como se tivesse uma dupla personalidade, para fora projecta uma auréola de alegria, de cultura, de pujança e de aventura, por dentro, ela é extremamente complicada e labiríntica.
Quanto a Portugal, há que dizê-lo, tem uma personalidade mais homogénea. Mas as nossas relações não estão tanto determinadas por isso, embora isto pareça estranho, as relações entre os dois países da Península Ibérica estão muito determinadas pelos países do exterior. É um pouco em função do modo como o resto do mundo evolui que nós marcamos a relação com Espanha. É um pouco a consequência da envolvência da península que faz com esta depois vá evoluindo.
Urbi@Orbi – O Nobel português da Literatura disse que Portugal e Espanha caminham para uma união real, também lhe parece isso?
Gabriel Magalhães – Penso que não. Tal facto não era nem bom para Espanha, nem bom para Portugal. Essa união real daria lugar a uma desunião total. Nesta altura, Espanha já tem muitos problemas em conseguir manter a homogeneidade do seu território, qualquer coisa que viesse a surgiu com Portugal integrado, teria de ser mais dispersa. Seria uma espécie de confederação em que cada parte puxaria para seu lado.
Penso que na península é tal a diversidade que mesmo que exista uma vontade de união sempre haverá uma parte que não se integra nessa união. Podemos tentar a unidade mas haverá sempre qualquer coisa que vai escapar. Até aqui temos sido nós, mas se deixarmos de ter esta autonomia, será uma qualquer outra parte da península a levantar voo e começar o seu caminho próprio. Na península haverá sempre unidade, mas também um país que esteja autónomo do outro.
Urbi@Orbi – Considera-se um “centauro ibérico”. Depreendo então que seja também defensor, em certa medida da existência de um espaço peninsular comum mais efectivo que na actualidade?
Gabriel Magalhães – Vivo nesse espaço comum, faz-me falta e faz parte da minha vida e da minha personalidade. Mas devo dizer que sou claramente português. Mas este facto não me impede, de modo nenhum, de ser peninsular. Para ser peninsular não preciso ser espanhol.
Urbi@Orbi – Retomo uma questão central da história da zona, a nossa ligação a Espanha. O professor sente uma maior interacção entre a zona raiana a Norte e também no Alentejo, mas diz que existe como que uma Beira Interior de costas voltadas para Castilha e Leon…
Gabriel Magalhães – É muito importante toda esta relação económica, todas estas colaborações que têm surgido nos últimos anos e que devem ser apoiadas. No caso da Beira, o facto da região que temos em Espanha ser a de Castela e Leão não facilita as coisas visto ser uma das regiões menos activas. Não quer isto dizer que não se possam fazer coisas, mas digamos que há território, zonas mais permeáveis, como é o caso da zona da fronteira galega ou da “Extremadura”, muito conhecida esta pelo trabalho que tem feito com Portugal e por ser uma prova de que muito mais se pode fazer na região da Beira. Mas não vejo tanto este tema como um problema português, vejo-o mais como um problema espanhol.
Urbi@Orbi – Muito se tem dito, muito se feito para um incremento das relações entre Portugal e Espanha. No aspecto político, económico, social e cultural, aqui o professor liderou inclusivamente um projecto transfronteiriço (Relipes). Contudo, há quem diga que existe um certo hiato entre os dois países teima em não diminuir. Concorda, porquê?
Gabriel Magalhães – Penso o contrário, esse hiato foi muito diminuído nos últimos anos. Chamo a atenção, por exemplo, para o elevado crescimento do ensino do Espanhol no secundário português. Mas nós portugueses devemos pensar da seguinte forma, obviamente que as relações com Espanha têm a sua importância, mas não podemos centralizar tudo em Espanha, isto porque vai haver sempre desajustamentos, separações, distâncias que existirão sempre.
Nós temos outras dimensões que também devemos explorar como a relação com os países africanos e outros países de expressão portuguesa. Portugal é um País peninsular, mas também universal. Tudo isto com uma certa humildade, algo que não é dito com muitas maiúsculas, mas que é prova do que podemos fazer nos Estados Unidos, no Brasil, em Angola e noutros tantos pontos do mundo. Já fizemos tantas coisas lá fora, por isso não nos devemos agora fechar a essas outras possibilidades.
Urbi@Orbi – E relativamente ao ensino do português quer em Espanha, quer no resto do mundo, como tem visto isso?
Gabriel Magalhães – Em Espanha é necessário que o ensino do português cresça. Há algumas regiões, como a “Extremadura” em que houve um crescimento muito grande, mas é necessário mais. Era também conveniente que Portugal conseguisse passar uma mensagem e uma imagem de si mais homogénea no mundo. Isso ainda não foi feito porque não sabemos, hoje em dia, quem somos. Esse é um dos nossos maiores problemas, na actualidade. Até porque, ao não sabermos quem somos também não nos conseguimos explicar aos outros, mas penso que isso se vai resolver nos próximos anos.
Urbi@Orbi – O problema de Portugal é então um problema de falta de memória?
Gabriel Magalhães – É uma certa desmemória, sim. O meu grande amigo e professor, Onésimo Teotónio Almeida, defende que as identidades se constroem no futuro, isto é, com um projecto de futuro, que as pessoas possam partilhar. Tem toda a razão, até porque nós já não vivemos no tempo dos castelos, não pode ser um regresso ao passado, mas penso que há episódios na história portuguesa essenciais, e não estou a falar de um certo amor a coisas antigas e pequenas, mas estou a falar de aspectos essenciais do nosso passado que estaremos agora a esquecer.
Urbi@Orbi – Uma sua publicação valeu-lhe logo um dos mais cobiçados prémios literários, (Prémio Revelação da Associação Portuguesa de Escritores), com este livro tem conhecido uma grande repercussão na imprensa nacional e estrangeira. Como está a ser esta aventura?
Gabriel Magalhães – Faz parte do percurso de um professor de Letras assumir uma dimensão mais criativa. Não é obrigatório, mas pode ser importante. Exactamente como há professores de Arquitectura que são mesmo arquitectos, ou professores de Engenharia que são mesmo engenheiros, também sempre imaginei que o trabalho na área das Letras passaria por fazer obra criativa e isso tem sido uma grande satisfação ver que as duas coisas comunicam. Mesmo no convívio com os meus alunos incentivo-os a escreverem, há mesmo em algumas cadeiras alguns trabalhos de escrita criativa e portanto, é preciso entender as letras não só de uma maneira burocrática, como algo que se ensina nas salas de aula, mas também como uma coisa criativa, que se pode aplicar na literatura, nas empresas, entre outros. As Letras estão por toda a parte e não se podem confinar às salas de aula. Ao escrever foi um pouco o que tentei fazer.
Urbi@Orbi – Escreve em prosa, muitas das vezes, mas é um apaixonado pela poesia….
Acho que todos os portugueses têm essa paixão, até porque, Portugal não se entende sem os seus poemas, sem os seus livros. Esta é uma das características mais curiosas deste País.
Gabriel Magalhães – Este é um País livro, e lá está o problema da desmemória, que é o grande drama de Portugal, que surge de uma grande falta de convivência com os seus livros, porque os nossos livros são também o nosso território, a nossa bandeira. A nossa identidade passa por Pessoa, Camões, Eça e outros tantos e é lá, um pouco nesses livros, que nós nos podemos ver e reencontrar.
Urbi@Orbi – São figuras e obras bem tratadas?
Gabriel Magalhães – Estão bastante esquecidas num processo progressivo de amnésia que passa até pelo nosso ensino secundário em que o peso da literatura é cada vez menor. Isso é a mesma coisa que destruir os nossos monumentos. Imaginemos deixar ao abandono os Jerónimos, ou o Mosteiro da batalha. É isso que está a acontecer aos nossos livros e depois as pessoas ficam órfãs e acabam por não saber quem são.
Urbi@Orbi – Isso surge também de uma certa mercantilização da literatura?
Gabriel Magalhães – Surgiu um público leitor muito mais amplo. Isto é um fenómeno importante na realidade portuguesa porque antigamente tínhamos poucas pessoas que liam muito, hoje temos um público muito mais amplo, extenso, mas que não são leitores intensivos. Isso foi uma grande evolução na nossa sociologia e foi uma das melhores consequências deste aumento de escolaridade. Daí que sejam possíveis fenómenos de êxito como os de Miguel Sousa Tavares e outros, fenómenos que não eram possíveis há 25 anos. Este novo público, que é o futuro do nosso País, ganhava tudo em que se conseguisse fornecer um tipo de leitura mais interessante, sem deixar de dar entretenimento e emoção.
Há uma camada da população portuguesa que está à procura do seu caminho, mas as editoras não lhes estão a fornecer os mapas que permitiriam fazer uma melhor viagem.
Urbi@Orbi – Só escreve de madrugada, é certo? Porquê isso…
Gabriel Magalhães – Com o trabalho na UBI, com a minha vida familiar tenho de aproveitar duas horas logo no início do dia. Depois, porque acho que todas as pessoas deviam ter um tempo para elas, antes de começarem cada dia, ter um percurso secreto, próprio.
Urbi@Orbi – E os próximos trabalhos?
Gabriel Magalhães – O próximo livro, um romance, será sobre Portugal. Não sei ainda quando ficará concluído, mas é nisso que estou a trabalhar. Um livro é extremamente complexo e muitas vezes, quando as pessoas querem escrever, não têm noção disso. Mas a primeira versão do livro está bastante avançada.
Entendo a escrita como uma coisa que se dá aos outros, não que se oferece a nós próprios. Obviamente que ficamos bastante felizes pelo facto de escrevermos e público dizer que gosta. Tal como uma pessoa não dá uma aula a sai mesmo, também não escreve um livro para si. Esta ideia de fazer um livro sobre Portugal vinha de há muito e está agora em andamento.
Urbi@Orbi – As suas obras abordam muito a temática da morte, um aspecto que disse estar a abandonar, é certo?
Gabriel Magalhães – Este meu livro será sobretudo vida, energia, futuro e esperança à maneira portuguesa. Mas os livros dependem dos leitores. Depois de serem escritos pelos autores, são escritos pelos leitores e portanto não posso falar do meu livro até ele ser escrito pelos leitores. O objectivo é algo optimista e tenta cortar este estado permanente de crise.
Urbi@Orbi – Como está o futuro da literatura portuguesa?
Gabriel Magalhães – A grande mudança das últimas décadas é que uma literatura que destacava pela sua poesia passou a destacar pela sua narrativa. António Lobo Antunes, Mário Cláudio, José Saramago, Mário de Carvalho e outros são um bom exemplo desta pujança narrativa. Portugal tem futuro na literatura e se tem futuro na literatura terá futuro como país. Enquanto formos capazes de nos escrever seremos capazes de ser portugueses. É muito importante, quer no trabalho académico, quer no trabalho literário, recuperar a nossa ligação com a filiação espiritual, recuperar a nossa alma.