Urbi@Orbi - Como é que se envolveu com o feminismo?
Cátia Melo - Cresci numa família de mulheres! Mulheres com histórias fortes, de todas elas a minha favorita era a da tia avó da minha avó. Pedia-lhe que a repetisse vezes sem conta…
Casou uma vez, já com 40 anos, com um senhor mais velho com quem nunca viveu. Não sei ao certo, mas quando soldados monárquicos marchavam de Braga para o Porto, passaram em Louro a terra dela. Ela apressou-se e hasteou um saiote vermelho (símbolo dos republicanos) e, ao mesmo tempo mandava as empregadas darem de beber aos pobres soldados que iam a acompanhar os labajões, como lhes chamou.Desde cedo que o meu fascinio pela vida destas mulheres se revelou! O meu pai faleceu eu tinha 5 anos. O meu avô tornou-se na figura do patriarca mas, para ter uma tv a cores quando já toda a gente tinha na altura, teve que implorar durante um ano à minha avó. Mais tarde, descobri a política e "a esquerda". O contacto posterior (e às escondidas) com a JCP e com elementos de uma outra força política, na altura o PSR, nomeadamente mulheres, deu-me a consciência que precisava. Para mim ser feminista pode resumir-se e generalizar-se desta forma: procurar onde estão as mulheres, que fazem as mulheres, quem são essas mulheres, etc. Quando fui para Coimbra tive a possibilidade de participar num colectivo, a república das Marias do Loureiro. Esta parte foi fulcral para uma aprendizagem mais profunda e vivencial do que era ser mulher e feminista activista. Aprendi, entusiasmei-me, apaixonei-me e descobri o que era afinal o feminismo, a consciência política feminista com uma grande senhora, Graça Abranches, que amavelmente se disponibilizou para dar seminários nas Marias do Loureiro.
Urbi@Orbi - Em que consiste o colectivo Marias do Loureiro?
Cátia Melo - As Marias é uma casa de mulheres, feminista, contra a praxe académica e de esquerda. É uma república, uma casa comunitária de mulheres (principalmente estudantes em Coimbra) que faz a sua própria gestão. A república (dirijo-me a ela como casa) é muito importante para mim, é a plataforma de luta o colectivo de mulheres, muito diferentes umas das outras, ao nível da situação ou classe. Agora não vivo lá mas continuo a participar activamente e ajudo em tudo. Como antropóloga, a análise que faço da minha casa é a de que a organização é realmente feminista. A gestão, a forma de nos organizarmos é feminista. Temos distinções em casa, mas não hierárquicas, temos reuniões mais ou menos mensais e votamos todas as actividades e outros assuntos por unanimidade. Temos direito ao veto, nada se faz, decide ou executa por maioria, todas concordamos ou nada. Quem é sexista, ainda que numa piada desafiadora, homofóbico ou de direita, conservador e retrógrado, não tem espaço na casa. Reivindicamos um espaço onde a voz de um homem não soa mais alto que a de uma mulher, onde podemos ser nós a decidir, a fazer. Temos escrito no manifesto da nossa casa: “Dizemos não ao silêncio, à opressão, à desvalorização. Nem deus, nem amo, nem partido nem marido.”
Urbi@Orbi - A república tem um blog. Quem o gere e para que serve?
Cátia Melo - Gerimos o blog colectivamente. A ideia surgiu da necessidade de comunicarmos com outros, de podermos divulgar o espaço das marias e de nos juntarmos a outras lutas. Divulgamos vários manifestos que redigimos, distribuimos, outras lutas, outras questões. Enfim, o que fervilha na casa. O blog é frequentado diariamente por gente tão diferente… professoras, académicos, jornalistas, feministas, artistas. Ainda agora alguns artistas vieram para um evento em Coimbra chamado All My Independent Women. Uma das artistas veio ao blog buscar fotos e histórias de vida. Está a fazer um trabalho sobre pessoas, colectivos e associações que participam na marcha mundial das mulheres.
Urbi@Orbi - Em que tipo de actividades se encontra actualmente?
Cátia Melo - Eu envolvo-me nas coisas onde a república está envolvida. Pertencemos à Marcha Mundial das Mulheres e, estamos a colaborar com o evento All My Independent Women. Há pouco tempo co-organizamos a Marcha Contra a Homofobia. Neste momento, além das que já mencionei, estamos a tentar estabelecer contacto com uma colectividade de mulheres zapatistas no México. Mulheres que procuram dignidade, o fim da opressão e do sexismo. Temos ligações a outros colectivos alternativos, não institucionalizados, feministas, a nível europeu. Estamos a tentar contactar com estas e outras redes. A plataforma da Marcha Mundial das Mulheres ajuda neste processo/projecto.
Urbi@Orbi - Desenvolveu uma tese de licenciatura relacionada com a prespectiva da antropologia feminista. Em que consistiu realmente o seu trabalho? Que aspectos procurou focar?
Cátia Melo - A minha tese centrou-se no corpo. Afinal, o corpo é o espaço onde, por excelência, a diferenciação sexual ocorre, é experimentada e performatizada. Procurei saber como as mulheres feministas se representavam. Investigar novas lutas e novas formas de auto-representação de mulheres. Escolhi o campo da arte, porque era o mais acessível e o mais conceptualizado. Procurei analisar como é que mulheres na nossa contemporaneidade se figuram, através de um novo método, apliquei um método à antropologia feminista. Acho que é isso que quero continuar a desenvolver para a minha tese de mestrado -- um método de análise crítica metodológica feminista para a antropologia em Portugal.
Urbi@Orbi - Depois de tantas lutas, tantas vitórias e derrotas, faz sentido falar de feminismo? Por que que lutam hoje as feministas?
Cátia Melo - Sim, faz todo o sentido. Não continuamos a ser silenciadas, excluídas, desvalorizadas? Apagadas da história e das histórias? Nos contos de fadas não continuamos a ser isso mesmo, fadas, princesas? E como somos representadas? Caladas, abnegadas, pacientes. Todos os estereótipos que se aplicam às mulheres são opressores. A linguagem e a língua continuam a discriminar as mulhers: o plural é sempre masculino, estamos sempre aniquiladas nele. Porque é que ser lésbica não é ser boa o suficiente, ou mulher o suficiente para ser mãe? Continuamos a ser sufocadas! A violência contra as mulheres em Portugal por exemplo, quantas mulheres foram espancadas na semana passada? Hoje? E mortas? Só desconstruíndo o que é ser mulher conseguimos por exemplo, contrariar esta tendência. Porque a questão reside aí: o que é ser mulher? E das tantas, porque é que as suas vidas, o seu trabalho, a sua profissão continua a ser desvalorizada.
Urbi@Orbi - Considera que já se fizeram algumas conquistas?
Cátia Melo - Claro. Houve grandes e pequenas conquistas, desde as sufragistas aos movimentos feministas dos anos 60 e 70, passando por várias outras fases até à actualidade. Muitas mulheres lutaram e conquistaram muitas coisas. Todavia, ainda há muito trabalho a fazer. A sociedade, as suas instituições, o Estado incluído, são sexistas. A continuação da violência contra as mulheres é prova disso. Espanha já se apercebeu onde estava o erro, e está a tentar melhorar. Assustaram-se com o número de mulheres mortas pelo conjugue ou parceiro. Já muito foi feito, mas continua a fazer todo o sentido o feminismo.
Urbi@Orbi - Quando acha que esta luta irá terminar?
Cátia Melo - Espero que termine. Não posso fazer previsões dessas, mas quando formos livres e, esta noção resume, para mim, a tal dignidade, o fim da opressão, da desigualdade... Não quero ser homem honorário, quero ser mulher de pleno direito, e não se confunda igualitário com igualdade, prefiro o primeiro conceito. Acaba o feminismo quando formos livres, quando as construções sociais, os estereótipos, deixarem de nos oprimir. É por isso muito necessario o trabalho feminista, o académico, o activista, e estas dimensões em trabalho contínuo e conjunto.
Urbi@Orbi - E como são os homens destas feministas?
Cátia Melo - Homens iguais a outros tantos homens. Nós somos machistas e temos atitudes sexistas, temos que aprender a desconstruir, reflectindo as nossas próprias atitudes, comportamentos… A nossa linguagem também, é muito importante. Os homens, tal como nós, por aprendizagem social, são machistas, e claro, o mais confortável para eles é poderem ver tv sem se mexer. As mulheres, feministas ou não, tentam mudar as práticas, pelo menos as dele.
Urbi@Orbi - A participação do homem no movimento feminista é recente? Como é que estes se inserem nestes movimentos? Vê isso como uma intromissão à vossa luta?
Cátia Melo - Às vezes. É intromissão. O mesmo tipo de intromissão que eu como antropóloga branca ocidental portuguesa, com passaporte da União Europeia, ao falar sobre os imigrantes não portugueses, não brancos, etc. sem instrução académica nem linguagem académica, faria. Esse mesmo tipo de intromissão é o que pode acontecer. Já há homens académicos a escrever com prespectivas feministas. É bom, mas quando falam da luta, ou quando decidem estudar mulheres com essa prespectiva, e por mulheres nós, eu por exemplo, aí, eles estão a fazer aproveitamento financeiro e de prestígio da nossa luta. Parece que, mais uma vez, nos vão roubar o direito a dizer sobre nós, a podermos falar! E silenciam-nos de alguma forma na medida em que, sendo homens a falar sobre feminismo vendem mais que mulheres a falar sobre o mesmo assunto. Continua a ser assim: os homens são mais sensatos, mais inteligentes, melhores investigadores que as mulheres. As ferramentas metodológicas de que dispõem, a linguagem académica, são masculinas. A linguagem é deles, a nossa é menosprezada.
Urbi@Orbi - Como é que é o encontro entre uma feminista e um machista?
Cátia Melo - O que acontece é que eles falam sempre por cima de nós com aquelas vozes graves que, ainda que num tom baixo, são mais perceptíveis. Para nos fazermos ouvir temos que gritar e se gritamos somos histéricas. Mas que é isto afinal do histerismo? Isso acontece todos os dias e nem é preciso sair de casa. O machista não é necessariamente um homem, é muitas vezes uma mulher, as nossas mães, avós, a vizinha, a amiga, que querem encaixar-nos num papel de submissão, com o qual nos devemos conformar e ainda sorrir. Todos os dias, quando se dirigem a mim com atitudes que definem como "vamos provocar uma feminista", com aquela atitude arrogante de quem sabe mais, de quem é mais inteligente, ou mais sensato, ou mais aquelas piadinhas, irritam-me profundamente. Esperam provocar para respondermos mas nem sequer sabem definir sexismo e muitas vezes confundem os tantos feminismos como o oposto do machismo. Esse encontro da feminista com o/a sexista é tão lato que até nos nossos próprios corpos existe, na nossa corporidade e íntimo, em nós.
Urbi@Orbi - Numa cidade com tantas tradições, principalmente a nível académico é dificil fazer ouvir a vossa voz?
Cátia Melo - É difícil, uma vez que somos mulheres, e identificadas como femininstas o que para muitos significa radicais lésbicas que odeiam homens. Mesmo na academia muitos estudos sobre movimentos estudantis ocultam-nos. Por outro lado, somos importantes enquanto único movimento contra a praxe em Coimbra. Muitas académicas e teóricas também nos incluem e gostam de nos conhecer, incitam-nos a lutar e reconhecem a importância das nossas lutas, pelo menos no contexto estudantil coimbrão. Entre elas, contra as propinas e a privatização do ensino e a praxe, nas quais fomos sempre muito activas. É engraçado ser um colectivo de mulheres e feministas, o moviemento contra a praxe em Coimbra. Redigimos o manifesto anti-praxe em conjunto com o MATA, e os antípodas do Porto, que foi assinado por muitas celebridades e cidadãos deste país. E porque somos feministas e mulheres desvalorizam o nosso nome e o impacto que temos no panorama de Coimbra, no contexto estudantil ou da própria cidade.
Urbi@Orbi - Pode relatar uma situação onde participou na luta por direitos, sejam universitários, contra a praxe ou femininos?
Cátia Melo - Já sofri agressões físicas numa manifestação por causa do aumento de propinas, salvo erro. Eu luto todos os dias! Antigamente as propinas eram, o equivalente a um salário minimo, eram cerca de 1000 escudos. O meu quotidiano é de luta. Viver numa casa feminista, tentar organizar-me com pessoas muito diferentes, gerir uma casa como a República das Marias, prescrutar notcias sobre tantas mulheres e as suas vidas, faz parte da minha luta. Neste momento estou a tentar trabalhar para que a memória das mulheres dos pescadores de Buarcos, na Figueira da Foz, não seja esquecida. Nem as lutas que todos os dias cada uma de nós tem que enfrentar, seja com os filhos, marido, o patrão etc. Todos os dias o nosso quotidiano é feito de luta, todos os dias temos que lutar contra a opressão, pelo direito ao meu amigo, que é gay, poder abraçar e acarinhar o namorado em qualquer sítio, de poder ser pai.
Urbi@Orbi - Pode explicar-me qual é o seu objectivo ao tentar preservar memória das mulheres dos pescadores de Buarcos?
Cátia Melo - Estou a recolher histórias de vida das mulheres dos pescadores do bacalhau de Buarcos. Muito foi escrito sobre os pescadores e os marinheiros, mas e as mulheres? Viviam anos sem os maridos, meses sem saber se estavam vivos ou mortos, se voltavam. Como cuidavam dos filhos? Como geriam as suas vidas monetariamente, socialmente? Quem são essas mulheres? É isso que quero saber! Quero conhecê-las e contar as condições duras das suas vidas, muitas vezes sem dinheiro, sem ter o que dar de comer aos filhos, insultadas nas ruas. Estas mulheres tiveram que se interajudar. Vivem em comunidade, são resistentes, e tiveram muitas vezes que se insurgir contra as suas condições de "mulher", para sobreviver, por exemplo, tiveram que exigir poder ter o mesmo trabalho que os homens.
Urbi@Orbi - O contacto com pessoas que têm diferentes vivências e dão a conhecer as suas histórias, fascina-a?
Cátia Melo - Muito. Quero poder ajudar a dar voz a quem não a tem. Pelo menos para que possam gritar nos meus trabalhos contra o silêncio, o apagamento, a opressão, a indiferença. E as mulheres são quem sempre está mais silenciado, sao as apagadas da história, das instituições, dos cuidados de saúde. Ainda acredito na revolução social e política.
Urbi@Orbi - Numa perspectiva pessoal, qual é o seu objectivo com todo o trabalho que realiza, com todas as suas lutas? Porque é que se dedica a isto?
Cátia Melo - É egoista. No fundo sou mulher, tenho mamas e uma vagina, e isso pelos vistos é um motivo para me excluir, para me calarem, para me exigirem algo que não tenho que dar. Não tenho por função fornecer filhos à sociedade, posso querer ter filhos/as mas isso não é uma funçaõ nem é o meu fim último no mundo. Quero ter os mesmos direitos que um homem e os meus específicos por ser mulher. Além disso, não consigo ficar em silêncio e de olhos e ouvidos tapados face ao que se passa com outras mulheres em diferentes contextos. Não sei ficar indiferente às tantas mulheres traficadas e obrigadas a trabalharem como prostitutas, vítimas de violências inarráveis. Nãoo sei ficar cega ao que se passa na Palestina, no México, na Argélia, em Portugal e Espanha… Não sei ficar calada quando uma mulher é violada a cada segundo que passa (nao sei se é essa a estatística) não sei ficar silenciosa. Não sei calar-me nem quero calar-me, quando há tantas mulheres viúvas a viver na miséria, tantas mulheres mortas só porque são mulheres e por isso tidas como mais fracas. Não quero concentrar-me no meu umbigo, as notícias do mundo só me fazem ter mais vontade para mudar. Quero transformar o mundo sim! Precisamos que estes mundos, os nossos e os das outras e dos outros mudem e, quero contribuir para isso!
Urbi@Orbi - Já pensou escrever um livro?
Cátia Melo - Sim, era o meu sonho aliás. Material não me falta, mas não saberia por onde começar. Espero que a minha tese fique boa o suficiente para isso. É um princípio! Apesar de académica estou a tentar que a tese aproxime pessoas, de outras áreas e sem estudos superiores, à antropologia, para que possam ler com vontade sobre o que escrevo e, mais importante que tudo, me compreendam.