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Desperdício de uns, alimento de outros
Ana Gonçalves e Conceição Mascarenhas e Gabriel Gonçalves e Gustavo Peralta · quarta, 8 de junho de 2022 · Há sete anos a fazer a ponte entre o excesso e a necessidade, a Refood põe comida na mesa de 80 famílias da Covilhã, mas precisa de mais voluntários. |
Beneficiários e voluntários da organização ReFood |
22019 visitas Nas ruas da Covilhã, outrora conhecida como a Manchester portuguesa, onde o frio e as luzes amarelas acompanham as noites de inverno, um portão cinzento dá acesso a uma organização que todos os dias aquece famílias com o conforto de uma refeição. A Refood, instituição sem fins lucrativos, existe na Covilhã desde 2014, três anos depois de ter sido lançada na capital pelo norte-americano Hunter Halder, radicado em Portugal. O projeto tem como propósito recolher comida não servida por restaurantes e pastelarias, e redistribuí-la por quem precisa. Ali, onde o voluntariado é fundamental para que a organização seja sustentável, encontramos Maria da Luz Batista, 61 anos, funcionária pública no Ministério da Justiça, que nos abriu, também ela, com um enorme sorriso, os portões da instituição. Natural da Covilhã, Maria da Luz é coordenadora da Refood na cidade, juntamente com Márcio Gomes, também voluntário. “Em 2014, houve um elemento da comissão que teve conhecimento do projeto e que o tentou trazer para a Covilhã”, recorda a coordenadora. Assim se davam os primeiros passos para trazer a organização que aspira a um mundo onde todos tenham comida e onde o desperdício alimentar deixe de ser uma realidade. Em Portugal existem 60 núcleos locais, 6800 beneficiários, 7500 voluntários, 2500 parceiros. Uma organização que assegura 150 000 refeições por mês e 1000 toneladas de bio resíduos evitados num mesmo período. “Aproveitar para alimentar” é o lema de quem diariamente luta contra o desperdício, resgatando toneladas de comida para alimentar quem pouco ou nada tem. Na cidade neve, em plena encosta da Serra da Estrela o frio constante em grande parte do ano não impede que voluntários se reúnam todas as noites para oferecerem algo reconfortante a quem mais necessita.
Mais voluntários Mas nem tudo é fácil quando uma organização vive apenas do esforço dos seus voluntários e parceiros. “Não temos qualquer tipo de ajuda financeira ou apoio governamental”, reforça Maria da Luz Batista. Fazer frente a despesas correntes, como renda, luz e gás, é um esforço permanente, segundo a coordenadora. “Já aconteceu pedirmos ajuda à Câmara e eles ajudarem, mas às vezes são firmas. A junta de freguesia dá-nos um xis por ano, mas não chega”. E há outras dificuldades, como a falta de voluntários. “São necessários muitos voluntários, porque existem cinco turnos no dia, uns têm de preparar a comida e à noite há quatro rotas. Tudo exige muita mão de obra”, sublinha Maria da Luz. Dos 120 voluntários do núcleo, muitos são estudantes universitários, “no entanto, ao fim de semana não estão, depois vêm as férias e também não estão… é difícil”. Apesar dos obstáculos, a motivação é não deixar famílias por alimentar. “Daqui ninguém sai de mãos a abanar. Se nos pedem ajuda, é porque de facto não têm possibilidades. Um princípio que temos é que a pessoa leva sempre alguma coisa. Depois levam uma ficha de inscrição e, mediante uma avaliação do caso, adapta-se a ajuda. Se houver crianças, isso requer outros cuidados ainda maiores”, explica a coordenadora. Na Covilhã, os beneficiários são cerca de 80, entre 200 inscritos. A “ementa” consiste, geralmente, em pão, sopa, prato e fruta.
Comida na mesa Fora de casa está um vento gélido, mas D., com 3 anos de idade, brinca junto à lareira. A mãe, J., sofreu um acidente de trabalho em 2019 e ficou com lesões motoras que a impedem de voltar a trabalhar nas limpezas, continuando desempregada. O pai, M., é operário fabril e o único membro da família a trazer salário para casa. A Refood tem uma política de sigilo para salvaguarda da identidade dos beneficiários. A reportagem usou outros contactos para ter acesso ao lado de quem beneficia, mas mantém confidenciais as identidades. Todas as escolhas da família são a pensar em D., dizem os pais. “Mas não tem sido nada fácil. Desde que parei de trabalhar, é quase impossível economizar”, confessa J., que recebe alguns apoios sociais, mas que não cobrem as necessidades. O casal é apoiado pela ReFood desde o verão de 2021, depois de M. ter sido alertado por um primo, que lhe deu a conhecer a organização. “Acho que as pessoas não têm consciência do quão o ditado «lixo de uns, tesouro de outros» se adapta à nossa situação”. A ajuda é importantíssima para que não lhes falte comida na mesa. Atendendo à existência de uma criança, a admissão da família foi “quase imediata”, sendo-lhes atribuídas “duas refeições completas: sopa, pão e segundo prato”. Qualificam a comida como “deliciosa”. J. apela às pessoas que estejam a passar pelo mesmo para não sentirem vergonha das dificuldades que a vida impõe. “Não passamos fome e devemos isso à Refood, a quem estaremos eternamente gratos”, diz M. com um brilho nos olhos. Em tempos de grande incerteza, organizações como a Refood representam uma janela de esperança.
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