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Infâncias interrompidas: memórias do trabalho infantil
Daniela Fernandes · quarta, 29 de agosto de 2018 · @@y8Xxv Ser criança nem sempre significou fragilidade, educação e cuidado. O trabalho infantil levou a que muitos vissem a infância interrompida. Em pleno século XXI, o fenómeno é ainda uma realidade em muitos países, colocando responsabilidades do tamanho do mundo nas costas de milhões de crianças. Na covilhã, o que ainda há são memórias de quem passou a infância a trabalhar. |
21990 visitas A valorização da infância sofreu, no final do século XX e inícios do século XXI, uma evolução, graças a contributos como os semeados por Jean Jacques Rousseau dois séculos antes. Conhecido como pai da pedagogia, Rousseau contribuiu, entre outros, para a construção de um novo olhar sobre a infância, realçando a importância de a amar e respeitar as crianças, favorecer as suas brincadeiras e os seus prazeres. Até então, as crianças eram vistas como mini adultos. Predominava a ideia de que “a criança era diferente do homem, mas apenas no tamanho e na força”, tal como destacou o historiador francês Philippe Ariés perante o caso da Revolução industrial, marcada pelo uso recorrente de mão de obra infantil. Uma mão de obra barata e disciplinada, com baixo poder reivindicativo. Manuel Pinheiro, com 83 anos e reformado após muito tempo “a encher canelas”, Jorge Trindade, hoje técnico e formador têxtil de 73 anos, e Elvira Cardoso, de 61 anos e atual funcionária da Universidade da Beira Interior, têm em comum a história de uma infância difícil, marcada pelo trabalho precoce na indústria da cidade neve. Manuel, Jorge e Elvira tiveram de substituir a boneca, o pião e a fisga pelas máquinas industriais, foram obrigados a trocar o ar livre pelo barulho ensurdecedor e os cheiros intensos da indústria, e abandonaram a alegria e a despreocupação da infância para terem de enfrentar uma seriedade precoce e cansada, fruto de longas horas de trabalho. Manuel Pinheiro começou a “trabalhar no duro” desde os 11 anos, nos campos agrícolas dos pais, tendo largado os estudos, impossíveis de continuar dadas as dificuldades financeiras da família. É com orgulho que mostra o cartão de admissão e inscrição na fábrica em que começou a trabalhar em 1949, com apenas 14 anos e quatro anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial. O “gaiato” de aspecto franzino, como se vê na foto, entrou para uma fábrica de lanifícios na Covilhã, onde aprendeu “o que era a vida" (áudio). Era nos teares, a fazer fazenda, que Manuel passava os seus dias como aprendiz, um serviço “de muita responsabilidade, bastava haver um fio trocado para o artigo ficar com defeitos”. Mais tarde, com 17 anos, Manuel passaria a ser tecelão mecânico, ganhando 7.500 escudos por dia. Um salário que não lhe pagaria, de todo, a infância que teve de deixar para trás, bem como as sequelas com que ficou após muitas horas de trabalho sem equipamento eficaz, num ambiente ruidoso que lhe afectou a audição (áudio) Se Manuel Pinheiro ainda tirava uns trocos do trabalho que fazia, o mesmo não se pode dizer de Jorge Trindade, filho de operário, que começou a trabalhar com 11 anos na fábrica Lopes e Pedão como ajudante de debuxador, sem receber qualquer salário (áudio). Oriundo de uma família com 11 irmãos, Jorge recorda os tempos difíceis: “Era uma autêntica exploração do trabalho infantil e do próprio trabalho dos adultos, que tinham salários baixíssimos” (áudio). Com um país preso às amarras de um regime ditatorial, a reivindicação dos direitos dos trabalhadores era uma tarefa difícil. “Era uma ditadura terrível” e sofria-se “uma pressão de todos os lados”, relembra Jorge Trindade: “Os sindicatos reuniam, mas havia por perto informadores da PIDE, bastante atentos ao que se dizia nessas reuniões”. Aos 14 anos, Jorge não baixou os braços perante as adversidades da vida. Continuando a trabalhar na indústria, aproveitou os conhecimentos que ia adquirindo de dia para a dia e, definindo-se como “uma pessoa que sempre quis aprender mais”, foi apostando na formação através de cursos nocturnos. Hoje, técnico têxtil e formador, não olha para o passado com rancor, mas não tem dúvidas em condenar o trabalho infantil: “Ficava chocado se visse hoje os meus filhos e netos a viver aquela exploração. Não se admite, de forma alguma, o que a minha geração teve de passar”. A infância foi também amarga para Elvira Cardoso. Com apenas 13 anos , viu os seus dias reduzidos a uma rotina pesada, dentro da fábrica de lanifícios António Pereira Nina. O trabalho começava quando o sol ainda mal tinha nascido, obrigando Elvira, entre tantas outras crianças e adultos, a fazerem um longo trajecto, a pé, até às fábricas. Uma realidade descrita no romance A Lã e a Neve, do escritor neorealista Ferreira de Castro: “Na estrada em direção à Covilhã caminhavam muitos operários (…) nestas procissões (…) muitos garotos de doze, catorze anos, vestidos com remendadas roupas e uma das mãozitas metida no bolso, enquanto a outra segurava o cesto da comida (…) a entrada nas fábricas era às oito menos cinco e se chegassem um minuto depois poderia ser-lhes descontada uma hora no salário”. Os dias de trabalho eram longos e o cansaço pesava em corpos frágeis de crianças tão novas, como Elvira (áudio). Com a função do ultimar do tecido, a jovem arrecadava 7.500 escudos por dia, mas o trabalho também incluía situações desagradáveis , como casos de assédio por parte de homens mais velhos e dos próprios “mestres”, que Elvira relembra como sendo “autênticos carrascos” (áudio). Embora hoje quase só restem vestígios industriais, como os esqueletos de muitas fábricas em ruína ou algumas chaminés-nobre que ainda conseguem manter a imponência, a Covilhã teve, em tempos, uma vasta presença industrial. Conhecida como a Manchester portuguesa viu os edifícios fabris instalarem-se a partir do século XVII e chegou a ter mais de 200 fábricas , que eram o sustento de muitas famílias da região, e o íman que atraía e roubava infâncias. “Filho de operário, operário hás-de ser”, era a máxima seguida por muitas crianças e jovens de famílias necessitadas. Eram obrigadas desde cedo a entrar no mundo do trabalho, logo após a instrução primária, ou até antes, como descreveu Ferreira de Castro: “os pais metendo, em cada geração, os filhos nas fábricas, mal estes iniciavam o trânsito da infância para a adolescência” . Esta realidade é retratada no filme A Covilhã Pitoresca e seus arredores, realizado em 1921 por Artur Costa de Macedo, onde se vê crianças em volta das máquinas em algumas fábricas da cidade (vídeo). Com o passar dos anos, começou-se a centrar mais atenção na criança. Em 1959, as Nações Unidas proclamaram a Declaração dos Direitos das Crianças, enfatizando “que a criança deve ser protegida contra toda a forma de abandono, crueldade e exploração” e sublinhando que “não se deverá permitir que a criança trabalhe antes de uma idade mínima adequada”, não sendo permitido “qualquer ocupação ou emprego que possa prejudicar a saúde e educação” nem “o seu desenvolvimento físico, mental ou moral”. Mas ainda hoje o fenómeno do trabalho infantil continua a estar presente em várias regiões do mundo. Apesar dos dados estatísticos serem escassos e existir uma realidade “oculta”, a Organização Internacional de Trabalho (OIT), indica que mais de 160 milhões de crianças em todo o mundo, são forçadas a trabalhar em sectores como a agricultura, indústria ou serviços domésticos. Nenhum continente escapa a este flagelo social. Destacam-se o continente Africano, com cerca de 71 milhões de crianças vítimas de trabalhos forçados, Ásia e Pacífico, com 62 milhões, e a América Latina, com cerca de 11 milhões, Europa e Ásia Central têm seis milhões e os Países Árabes um milhão de crianças vítimas de trabalho infantil. As causas são várias, maioritariamente ligadas à pobreza, desigualdade e exclusão social, falta de fiscalização, ou ainda a uma forte tradição cultural aliada a mitos que levam diversas culturas a ainda olharem para este fenómeno como algo emancipador, que enobrece a criança. Para Donizete Rodrigues, professor do departamento de Sociologia da Universidade da Beira Interior (UBI), elementos como o “universalismo, relativismo cultural e o desenvolvimento económico”, não podem ser deixados de lado ao falar de Direitos Humanos e ao refletirmos sobre a questão do trabalho infantil. Com intervenções em países marcados por um elevado índice de pobreza, como o Brasil, Bolívia ou México, Donizete Rodrigues relembra a dicotomia entre universalismo e relativismo cultural, que tem gerado várias discussões no meio académico. Apesar da essência universalista dos Direitos Humanos, o docente sublinha que é preciso ter em conta que “o mundo é multicultural e transcultural”, existindo em cada canto do globo diferente práticas , sejam elas “religiosas, morais e éticas” que “podem entrar em conflito com os Direitos Humanos”. Mas, para Donizete Rodrigues, é o factor económico que vem “complicar ainda mais esta discussão”. A exploração e o uso de mão de obra infantil têm sido levadas a cabo em países onde o elevado índice de pobreza salta à vista de todos. Há uma busca de produção a baixo custo e com condições precárias em nome de uma economia rentável, a que crianças necessitadas se submetem por uma questão de sobrevivência e sustento das famílias. Donizete Rodrigues questiona: “Como exigir o direito à educação, a ida à escola, quando estas crianças precisam de garantir, diariamente, a sobrevivência delas próprias e da família, através do trabalho infantil e da mendicância?”. A erradicação do problema tem estado na agenda de muitos governos e instituições. Organizações como a ONU, UNICEF ou a SAVE THE CHILDREN têm tentado reverter o aumento do número de vítimas de exploração, apostando na disseminação de ações voltadas para a proteção e desenvolvimento de políticas públicas que consigam garantir os direitos de todas as crianças e adolescentes. Segundo a OIT as soluções podem passar pela “promoção da coordenação e colaboração entre os actores e os programas nacionais”, bem como o desenvolvimento “do emprego, dos meios de subsistência”, ou ainda a “proteção social das famílias e o reforço do papel dos governos e das organizações de trabalho”. Soluções corroboradas pelo filósofo e docente da UBI André Barata, que sublinha que “é preciso dar ênfase às novas gerações de direitos humanos em torno da comunidade global e em torno de dinâmicas ecológicas e de homeostasia social, além dos já clássicos direitos de autodeterminação”. O objectivo é reverter uma situação que tem afectado crianças por todo o mundo. Crianças como Manuel, Jorge e Elvira, que tiveram de crescer cedo demais, atingidas pela exploração do trabalho infantil, que lhes deixou as mãos calejadas, o corpo debilitado e a infância interrompida. |
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