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Desde que há memória, há pastores
Sara Guterres · quarta, 17 de agosto de 2016 · Nos meios rurais, para lá das grandes cidades, ainda hoje nos é possível observar, nas encostas e vales das montanhas, rebanhos de cabras e ovelhas conduzidas por pastores. Uma arte que não se perdeu com o passar do tempo, mas que, dia após dia, se continua a afastar da memória das pessoas. |
Ovelhas e borregos a pastar numa aramada |
22028 visitas Para lá da Serra da Gardunha, nos arredores de uma pequena aldeia chamada Orca, o ofício de pastor é uma arte que ainda se mantém viva. Apesar de serem poucos aqueles que dão continuidade a esta atividade, devido à falta de apoios e àquilo que a profissão exige, a pastorícia continua a tecer a sua história. Fataca, sarroa, cabaça e pífaro são alguns dos instrumentos que José Gomes utilizou durante o tempo em que foi pastor e que ainda hoje guarda na sua casa. Durante 35 anos dedicou-se de corpo e alma à arte da pastorícia. Devido ao passar do tempo e ao avanço da idade teve que abandonar a sua vocação, aquilo que, como diz, “o fazia realmente feliz”. Das noites mal dormidas em plena serra, para guardar o rebanho, José, que começou esta atividade com os seus tenros oito anos, recorda com carinho as aventuras que viveu, referindo que “nos dias de hoje já nada é como antigamente”. Os tempos mudaram e a arte pastorícia, essa, também mudou. Longe vai o tempo em que os pastores faziam jus ao termo que os designava. Atualmente, o conceito de pastor caiu em desuso e hoje temos os chamados “agricultores”. José concorda com o facto de que, nos dias atuais, já não se possa dizer que há pastores como no passado: “Com o aparecimento das aramadas deixou de se praticar esta atividade como antigamente. Nós antes tínhamos que andar sempre atrás das ovelhas para elas não fugirem e era isso que fazia de nós verdadeiros pastores...hoje já não é assim”, esclareceu. Silvina Vicente, esposa de José Gomes, sempre o acompanhou nas lides da arte de pastorear. Agora reformada, frisou a ideia de que antes o preconceito em relação aos pastores era maior do que é atualmente. “Quando dizia que o meu marido se dedicava a esta arte havia pessoas que até a cabeça baixavam”, comentou Silvina. A esposa do antigo pastor explicou ainda o porquê de, na altura, a vida daqueles que se ocupavam da pastorícia não ser muito fácil. Uma escolha de vida ou o seguimento de um negócio de família. As dificuldades, que Manuel dos Santos Antunes enfrentou na sua infância, cedo o obrigaram a abandonar a escola e aos seis anos de idade já auxiliava os seus pais na criação e tratamento de gado. Manuel conta que quando começou a ajudar os seus pais nas lides da pastorícia “ganhava apenas cerca de 50 escudos por mês”. “A gente ganhava pouco, ao fim do mês já não havia dinheiro”, referiu. Apesar das adversidades da profissão, o gosto pela arte nunca morreu. Ao longo da sua vida, embora tenha exercido outras profissões, como a de sapateiro, nunca perdeu o “bichinho” que desde cedo lhe foi incutido. Apontada por muitos como uma vida dura, Manuel considera que este é um ofício “fácil de levar para quem gosta”. Hoje, com os seus 80 anos, tem um negócio, do qual os seus filhos também fazem parte, e dedica-se à produção de leite e queijo. O atual agricultor explicou o porquê de a arte de bem tratar o gado “não ser algo que se aprenda na escola”. Apesar de os tempos terem mudado, e de hoje em dia não ser tão fácil vender os produtos que se fabricam a partir da criação de gado, Manuel Antunes diz acreditar que “a atividade pastorícia nunca acabará”. Para uns uma arte esquecida, para outros um modo de viver. Os apoios são poucos, mas há quem não abdique desta profissão. Os subsídios, fornecidos pelo Estado, muitas vezes não cobrem as despesas do ofício. “É uma vida presa e, por vezes, ingrata. Os apoios que nos dão não são muitos e o controle é demasiado. Preferia que nos retirassem os apoios e que nos deixassem trabalhar livremente como antigamente”, confessou Jorge Almeida, que se começou a dedicar a este ofício quando tinha 12 anos de idade. Atualmente, com 42 anos, Jorge admite que “não se vê a fazer outra coisa”. Embora acorde todos os dias por volta das cinco da manhã para ir ordenhar o gado e só regresse a casa às oito horas da noite, diz sentir-se “bem com o que faz”. Acrescentou ainda alguns dos motivos que o fazem apaixonar-se, dia após dia, pela profissão. Com um ordenado que ronda os 500 euros por mês, quando assim o é, poucos são aqueles que se entregam a esta vida. “É muito difícil. Andamos todos os meses a contar os trocos, mas é assim...temos que nos aguentar”, confessou, em tom de descontentamento, Maria Piedade, pastora e mãe de quatro filhos. Não escapou da herança dos pais, mas deseja que os filhos quebrem a tradição e tenham outra vida. Confessa que “deseja tudo para os seus filhos, menos que sigam os seus passos”. “Eu só peço a Deus que eles prossigam com os estudos e que tenham uma vida melhor do que esta. Isto não é vida para eles, pelo menos eu não quero que seja”, comentou Maria. Manual ou mecânica: assim é feita a ordenha, um processo que consiste na extração do leite das cabras ou ovelhas. Hoje, já são poucos aqueles que praticam esta ação de uma forma manual. Contudo, ainda há quem o faça. É o caso de Esmeralda Lopes, já com 11 anos de experiência na área, que acorda todos os dias por volta das seis da manhã para iniciar a ordenha. A pastora diz que o faz por “não ter meios para sustentar toda a maquinaria necessária” e explicou o porquê de achar que há uma desvalorização da profissão. Antes de se entregar a esta vida, Esmeralda trabalhou como empregada fabril e hoje diz “arrepender-se de ter abandonado esse emprego que lhe dava mais regalias”. Contudo, para quem tem uma quantidade numerosa de animais, torna-se impossível fazer ordenha manualmente. Ângelo Galante, 64 anos de idade, dedica-se à produção de queijo e venda de borregos. Com um negócio na vertente agrícola e gastronómica, Ângelo tem como empregados dois pastores que se ocupam, essencialmente, de ordenhar o gado. “A ordenha é feita através de máquinas, de outra forma seria moroso porque eu tenho aqui cerca de 700 ovelhas e cabras. Por isso eles não têm um trabalho tão custoso como já foi em outros tempos”, referiu o empresário. Acrescentou ainda que hoje já não há verdadeiros pastores: “isso é coisa de antigamente, o que eles fazem nos dias atuais é ordenhar os animais e levá-los para as aramadas, nada mais”. Uns continuam a exercer este ofício, outros tiveram que abandonar a atividade. É o caso de António Pereira, agora com 76 anos, que teve de abdicar da profissão devido ao avanço da idade e aos problemas que ela lhe trouxe. Apesar de hoje já não ser pastor, António vai, todos os dias, ao seu pátio onde tem meia dúzia de ovelhas. “Continuam a ser a minha companhia. Hoje já não as ordenho para produzir leite ou queijo para venda, mas por vezes ainda vendo um ou outro borrego”, confessou. A arte de pastar, essa, nunca a perdeu. Ainda hoje vai com as suas ovelhas, sem destino certo, para os campos fazer aquilo que já quase ninguém faz: “deixá-las andar livres de aramadas”. O antigo pastor apontou uma das razões que faz com que a pastorícia continue a existir, mas não da mesma maneira que outrora. Como forma de valorizar uma profissão que hoje já não é tão comum como em outros tempos, surgiu o “Chocalhos - Festival dos Caminhos da Transumância”, resultado de uma parceria entre a Câmara Municipal do Fundão e a Junta de Freguesia de Alpedrinha. O objetivo de criar um festival direcionado para esta arte passa por “dar a conhecer às pessoas a história dos antigos pastores da região”. Um dos momentos mais altos do Chocalhos é a viagem por um dos caminhos da transumância, em que qualquer pessoa pode acompanhar um rebanho e ser pastor por um dia. Mas nem só através de festivais ou feiras se promove este ofício. Hoje em dia, embora poucas, há associações, como a Associação de Pastores e Produtores do Queijo da Serra da Estrela do Concelho de Gouveia (APROSE), que procuram dar apoio aqueles que, apesar das dificuldades, dão continuidade a uma das artes mais antigas de que o Homem tem memória. Segundo o ex-presidente e atual membro da assembleia da APROSE, José Borges, “a associação procura defender, ouvir e esclarecer os pastores acerca de qualquer dúvida que possam ter”. Apesar de todas as dificuldades que possam estar associadas a esta profissão, a verdade é que ainda há pessoas que continuam a ter interesse por ela. É o caso de João Carvalho, com 45 anos de idade, que ingressou neste ofício há cerca de quatro anos. O atual criador de gado confidenciou que um dos motivos que o levou a ter interesse pela profissão foi “a liberdade que ela oferece”. “Tratou-se de uma fuga ao stress. Trabalhei como vendedor, eram muitas horas e, acima de tudo, muita pressão. Apesar de aqui também ter que trabalhar todos os dias, sem exceção, porque o gado precisa de ser alimentado e ordenhado, é completamente diferente”, explicou João. O mais surpreendente é ver pequenos novos aspirantes a ter interesse por esta área, com vontade de dar continuidade àquilo que para muitos é um negócio de família. À pergunta “o que é que dizes quando te questionam sobre o que queres ser quando fores grande”, Filipe Daira, um jovem de 12 anos, responde, com um brilho especial nos olhos, “que quer ser agricultor”. Filipe explicou o porquê de ter ganho o gosto por esta arte que, nos dias de hoje, continua, mesmo que de uma forma diferente, a fazer parte da nossa realidade. |
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