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«Hotel de passagem»
Sandra Azevedo · quarta, 3 de fevereiro de 2016 · É mais um dia, dos muitos anos já contados, dos utentes do Lar da Santa Casa da Misericórdia da Covilhã. São histórias, são vidas de quem já cá anda há muito tempo e de quem cuida destes idosos. São médicos, enfermeiros e funcionários que lutam pelo bem-estar destas pessoas diariamente. Bem vindo ao Hotel cheio de histórias de vidas prolongadas. |
Convívio nos corredores do Lar da Santa Casa da Misericórdia da Covilhã. |
22016 visitas São 104 vidas que diariamente são cuidadas, alimentadas e entretidas. O Lar da Santa Casa da Misericórdia da Covilhã, situado a caminho da Serra da Estrela, é composto por dois edifícios: o das pessoas mais independentes e o das dependentes. O edifício 1/B é onde estão as pessoas que precisam de outras pessoas. E Mariana Fiadeiro, assistente social, é a pessoa que quase toda a gente precisa. Há cerca de quatro anos entrou no lar para realizar um estágio e desde aí a sua vida mudou. A sua paixão pela área da terceira idade nasceu na Santa Casa da Misericórdia em Lisboa, onde fez voluntariado quando era mais jovem. "Quando regressei a Covilhã, depois de quatro anos a estudar, tive a sorte de encontrar um estágio e de ficar aqui. Comecei no início por fazer mais trabalho de animação cultural. Foi muito bom porque me ajudou a criar laços de confiança", explica Mariana. Diariamente acompanha a vida destas pessoas. Passa muitas horas de corredor em corredor a tomar conta das necessidades dos residentes. Segue as entradas, faz as admissões, acompanha a medicação, as consultas do médico e ainda assiste a consultas desde neurologia e psicopatia. "Vou ver o dia a dia deles, o que está a correr bem e o que está a correr mal. Em relação ao que está a correr mal vemos o que podemos mudar, dadas as rotinas que eles já traziam de casa ou do hospital". Mariana tem uma relação próxima com a maioria dos utentes. "Marianazinha", como é conhecida, tem sempre cuidado com os gostos dos utentes: sobre o que gostam de comer e os horários a que vêm habituados para que assim seja possível fazer as escalas de serviço nesse sentido. "Se a pessoa gosta de dormir mais tarde se calhar vou pedir às funcionárias para acordá-la um bocado mais tarde e não tão cedo. Tenho pessoas que gostam de acordar às seis da manhã, por exemplo. Tento sempre conjugar isso tudo", explica. Mariana é também o ponto de ligação entre a família e o utente, uma tarefa complicada porque "às vezes os utentes contam coisas à família que não nos contam a nós, com medo, ou vice versa", refere. Os corredores enchem-se de idosos já com dificuldades não só físicas mas também psicológicas. A empatia da idade instalou-se. Mariana dedica o seu dia a dia "em prol deles, do que é preciso: carinho e atenção", mas confessa que é difícil e que há dias em que os utentes "estão mal e choram, mas um simples "miminho" como ir à máquina do café buscar café e rebuçados" é o suficiente para animá-los, confessa. Além de dedicar o seu tempo às necessidades dos mais velhos, Mariana também acompanha todas as atividades realizadas diária, semanal e mensalmente. Acompanha as saídas ao exterior, desde a ida ao cinema, teatro e às aulas de grupo de zumba, e até já foi possível levar 40 utentes, em setembro, a Fátima. "Normalmente o que fazemos de manhã é rezar o terço, que é sagrado, e ao mesmo tempo ao longo das atividades todas vai decorrendo a fisioterapia. Apesar de tudo, enquanto está a decorrer o terço, há pessoas que não gostam porque não são católicas ou porque não apreciam. Por isso, fazem atividades de estimulação cognitiva ou jogam dominó, cartas e veem televisão". As atividades prosseguem durante a tarde, com ginástica dada por dois animadores, e os ateliês de culinária e cinema. As saídas são também frequentes, desde a visita a uma galeria até uma aula de zumba. Mas há um dia da semana que é muito esperado pelos utentes. "As terças-feiras são sagradas para eles. O senhor Zé Pinho vem cá dar aulas de quizomba, danças latinas, de cântico, e reza de poemas lindíssimos”. É durante esse tempo que os residentes do lar aproveitam para colocar a sua leitura em dia . “Pode não ser a pessoa que escreveu o livro a ler, porque já não consegue ver tão bem ou até já não se lembra, mas nós fazemos questão que se dediquem a isso neste espaço”, explica Mariana. Um dos objectivos da instituição é relembrar às pessoas que o lar não é sinónimo de um espaço triste, mas sim de alegria, conforto e partilha. Existem sonhos que são realizados. Mariana conta uma história dessas, conseguida com a ajuda de todos. "Tivemos o caso de um senhor de 90 anos que escreveu 4 livros e tinha um em casa ao qual só faltavam os desenhos e organizar um texto. Organizámos uma surpresa e editámos o livro, que é sobre as 12 profissões mais antigas da Covilhã. Fizemos uma surpresa onde estiveram os amigos e vizinhos, foi emocionante”. Tentar ocupar os tempos livres é a palavra de ordem do Lar. Além dos ateliês normais existem os ateliês de épocas: o do Natal foi o mais recente, que contou com a ajuda de utentes e animadores para as decorações. Uma das atividades preferidas dos idosos tem muito a ver com a história das fábricas da Covilhã. Em parceria com a empresa Brancal, que fornece fios para o atelier de costura, onde são feitos "exemplares e cartazes", uma ideia que "todos adoram porque era o que faziam quando começavam a trabalhar nas fábricas. É das melhores atividades que fazemos aqui", acrescenta Mariana. A música, seja alegre ou triste, tem um lugar especial na rotina dos idosos. Sacode a poeira das memórias que acabam por ser partilhadas entre eles e profissionais. "Com uma música dá para fazer muita coisa. Puxar coisas do passado, frustrações que estão ali escondidas e não damos conta. É muitas vezes no atelier de música ou numa ida a um concerto, por exemplo, que se descobre tanta coisa", explica a assistente social. Apesar de sempre entretidos e recheadas de atividades, existem muitas dificuldades que começam à entrada dos utentes na instituição. Abandonar a casa, a perda de independência e o convívio com pessoas desconhecidas. "Ou a pessoa sabe para o que vem ou às vezes é mau. Muitas vezes as famílias dizem que vêm no sentido de se tratarem e depois com o passar do tempo, e em comentários com os outros colegas, os utentes vão-se apercebendo que isto afinal é um lar e não uma casa de tratamento", menciona Mariana. Com muito trabalho e esforço, a instituição consegue que os utentes recuperem e voltem a ser o que outrora foram. Mariana dedica os seus dias aos idosos e só com o passar dos anos é que conseguiu lidar com as perdas. "Acho que agora já estou calejada, mas no início era das piores coisas. Existiam alturas em que saía para fim de semana e quando voltava na segunda já cinco ou seis pessoas tinham morrido". Em corredores cheios de empatia, existem histórias de uma vida, que são relembradas por duas utentes residentes no lar há alguns anos. "Meto o pé bom e depois o outro". É assim que Maria Leal começa todas as manhãs. Tem 95 anos, é das mais antigas no lar, foi cantora toda a vida mas hoje "até beber água cansa", explica. Considera-se feliz no lar, mas há um desafio que a impede de fazer o que quer: subir escadas. Com as mãos cruzadas relembra a sua filha mais nova que faleceu recentemente. Quando questionada acerca do que faz diariamente, Maria responde sem hesitação: "Rezo pela alma da minha menina, nunca me esquece a minha filha". Maria luta todos os dias por um objetivo que espera realizar rapidamente: "Quero ir à campa da minha filha". As escadas são uma pedra no caminho, mas todos os dias luta para ultrapassar este desafio com a "fisioterapia à terça e aulas de ginástica". Tem dias melhores e dias piores. "Às vezes falo, às vezes estou calada. Estou a rezar. Quem me vir é com o terço na mão". Alexandra Santana, no mesmo corredor, é das mais jovens, tem 78 anos e já conta com três natais no lar. "Gosto de cá estar, mas antes gostava mais de estar em casa. A nossa casa é a nossa casa", explica. Foi uma decisão em família a sua ida para o lar. Apesar das suas dificuldades de adaptação, Alexandra recuperou o andar que tinha perdido. "Comecei a fazer uma fisioterapia e continuo a fazer dois dias por semana. Andei de cadeira de rodas, andei de andarilho e agora tenho a minha bengala". Relembra que inicialmente "custou muito, mas nunca dei a mostrar ao meu filho para ele não sofrer". Alexandra Santana já perdeu o marido e um filho, afirma que ficou doente com tudo isso mas que diariamente "a "Marianinha" é que me segura mais". Recorda muito a sua juventude e sente-se frustrada por ter sido "uma escrava" a trabalhar para ter uma casa e "não ter gozado dela", mas admite que agora "faz muita coisa" e que "todos a tratam bem, se tiver mais em baixo notam logo, mas às vezes não tenho alegria". Mariana tenta dar vida a estas pessoas todos os dias. Dá o seu tempo, energia, ternura e sorriso. Não sabe quanto tempo poderá olhar mais para aqueles rostos que marcam o seu dia. A Mariana é a esperança de muitas destas pessoas, é a razão do sorriso e dos alívios dos corredores. Alguém perguntou a Mariana como descreveria o lar. Sorriu e silenciou-se por um momento. Quando se pronunciou não hesitou e afirmou que "o lar é mais do que uma palavra, é uma casa. É união, alegria, é um misto de sentimentos. Olho para isto e vejo um hotel, vejo alegria, felicidade, compreensão, vejo dedicação de todos, desde auxiliar a funcionário, a terapeuta, a enfermeira. Olho para isto como um hotel de passagem". |
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