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«24/7: O Capitalismo Tardio e os Fins do Sono»
António Bento · quarta, 26 de agosto de 2015 · @@y8Xxv
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21990 visitas Esta crónica adopta o título de um extraordinário livro de Jonathan Crary. É deste livro que vou falar, num esforço de resumo e síntese que o não desmereça ou desfigure. O seu autor é professor de História de Arte Moderna na Universidade de Columbia, Nova Iorque. Em suma, a tese maior de J. Crary em 24/7: Late Capitalism and the Ends of Sleep é a de que o sono é o derradeiro obstáculo ou a última das barreiras naturais de que o capitalismo financeiro contemporâneo não se consegue apropriar de um modo definitivo. Neste sentido, a necessidade humana de sono é um verdadeiro escândalo e uma autêntica afronta à realização integral do que o autor, numa fórmula pregnante, chama «capitalismo 24/7» (24 horas por dia, sete dias por semana). 24/7 significa aqui a imposição generalizada a todas as formas da vida humana de uma duração sem interrupções, de um tempo homogéneo que transcende o tempo do relógio e que se define por um princípio de funcionamento e operatividade contínuos: «24/7 é um tempo de indiferença, contra o qual a fragilidade da vida humana é cada vez mais inadequada, e no qual o sono não é necessário nem inevitável. Em relação ao trabalho, torna plausível, até normal, a ideia do trabalho sem pausa, sem limites» (p. 9). Tendo em conta que a maior parte das necessidades da vida humana se transformou em mercadoria ou investimento convertíveis em valores de mercado, o sono constitui a grande e intolerável excepção a essa mercantilização e financeirização integral do tempo vivido: «O sono é um hiato incontornável no roubo de tempo a que o capitalismo nos submete. Ele afirma a ideia de uma necessidade humana e de um intervalo de tempo que não pode ser colonizado nem submetido a um mecanismo maciço de rentabilidade e desse modo permanece uma anomalia incongruente e um foco de crise no presente global. Apesar de todas as pesquisas científicas feitas nesta área, frustra e confunde qualquer estratégia para o explorar ou redefinir. A espantosa e inconcebível realidade é que nenhum valor pode ser extraído do sono. Dada a dimensão do que está economicamente em jogo, não surpreende que se encontre em curso uma corrosão generalizada do sono» (pp. 10-11). Esta inscrição generalizada da vida contemporânea numa duração que não conhece nem descanso nem pausa, uma vida imperativamente submetida às operações ininterruptas dos mercados e dos sistemas de informação que requerem de cada indivíduo uma «disponibilidade absoluta», é magnificamente ilustrada pelo autor com dois exemplos que são tão sugestivos quanto aterrorizadores. No primeiro exemplo, J. Crary dá-nos conta de uma estranha iniciativa do Departamento de Defesa dos Estados Unidos da América: estudar a actividade cerebral do chamado pardal de coroa branca durante as suas migrações na plataforma continental americana. Todos os anos, pelo Outono, centenas destes pardais de coroa branca voam do Alasca até ao norte do México. Na Primavera voltam para o Norte. Ora, diferentemente de outros pássaros, o pardal de coroa branca possui a extraordinária capacidade de permanecer acordado ao longo de sete dias consecutivos durante a migração, o que lhe permite voar e navegar durante a noite e procurar alimentos de dia, sem descansar. O Departamento de Estado americano e as diversas universidades com as quais se associou neste inaudito empreendimento esperam poder obter conhecimentos aplicáveis aos seres humanos e descobrir como é que as pessoas podem ficar sem dormir e funcionar de modo produtivo e eficiente. O objectivo declarado (e descarado) desta tentativa de controlo sobre o sono humano é a criação de um «soldado que não durma». As colossais quantidades de dinheiro que o complexo científico-militar americano tem vindo a aplicar em estudos sobre a privação do sono e em testes experimentais de técnicas de privação do sono e estimulação da vigila têm um fim claro: reduzir a necessidade de sono do corpo humano e criar assim o «soldado que não dorme» que, por sua vez, configuraria o «trabalhador sem sono» e o «consumidor insone» (pp. 1-3). Não sejamos ingénuos: a história mostra-nos frequentemente que as inovações científicas e tecnológicas relacionadas com a guerra são inevitavelmente assimiladas e incorporadas na esfera económica e social. A progressiva e sucessiva privação do sono nesses «sujeitos de interesse» que são os indivíduos enquanto «agentes económicos» é, por assim dizer, o sonho glorioso dos mercados que actuam em «regime 24/7». O segundo exemplo não é menos instrutivo. De acordo com J. Crary, no final dos anos 1990, um consórcio especial russo-europeu anunciou que tencionava construir e lançar satélites que reflectiriam a luz do Sol para a Terra. A ideia previa a colocação em órbita de uma cadeia de satélites, sincronizados com o Sol, a uma altitude de 1700 quilómetros, cada um deles equipado com reflectores parabólicos retrácteis, da espessura de uma folha de papel. Uma vez completamente abertos, cada satélite-espelho, com duzentos metros de diâmetro, teria a capacidade de iluminar uma área da Terra de 25 quilómetros quadrados, com uma luminosidade quase cem vezes maior do que a da Lua. Em princípio, o projecto visava fornecer iluminação permanente para a exploração industrial de recursos naturais em regiões remotas com longas noites polares, na Sibéria e no Leste da Rússia, permitindo actividade ao ar livre, noite e dia, sem parar. Todavia, o consórcio acabou por expandir os seus planos iniciais apostando na possibilidade de oferecer iluminação nocturna a regiões metropolitanas inteiras. Contra a oposição de astrónomos, ambientalistas e grupos de activistas, os defensores deste projecto alegaram que a redução do consumo global de energia mediante a diminuição do uso nocturno de electricidade constituiria um preço razoável a pagar pela perda permanente e definitiva do céu nocturno e da escuridão, um bem natural essencial (pp. 4-5). Mediante estes dois exemplos, o propósito de J. Crary ao introduzir a fórmula «24/7» como princípio geral de explicação do funcionamento do actual «governo económico» do mundo torna-se claro. O «regime 24/7» que define o capitalismo contemporâneo mina progressivamente, indiferenciando-as, as distinções naturais entre dia e noite, claro e escuro, acção e repouso. Nele, não há já lugar para intervalos de calma, silêncio, descanso ou retiro. Tudo se encontra submetido a uma mesma condição geral de exposição e visibilidade permanentes, com um planeta iluminado ininterruptamente e no qual nada do que é íntimo ou privado pode permanecer oculto e fora do alcance da máquina predatória dos mercados e do sistema tecnológico de comunicações que a auxilia. Com o «regime 24/7» cumpre-se finalmente a utopia institucional que instrui o Panóptico que Jeremy Bentham idealizou no século XVIII: nada deve obscurecer ou impedir uma situação de visibilidade instrumentalizada e constante, pelo que apenas a supressão sistemática de todas as zonas de sombra assegura as efectivas condições do controlo económico e político dos sujeitos. O tempo consagrado ao descanso, à saúde e ao bem-estar é hoje demasiado caro para ser possível na economia financeira global: «Um mundo sem sombras, iluminado 24 horas por dia, sete dias por semana, é a miragem capitalista final da pós-história, do qual a alteridade que constitui o motor da mudança histórica foi exorcizada» (p. 9). «Time is Money» e o «regime 24/7» traz consigo a mais radical das despossessões a que o ser humano pode ser submetido: a biodesregulamentação do sono. De acordo com o paradigma neoliberal vigente o mundo é pensado e encarado como um local de trabalho ininterrupto e a insónia, compreendida como o único garante da disponibilidade para a acessibilidade e a conectividade permanentes, é o estado ideal a atingir. Dormir é doravante para os néscios e para os fracos. Mas se o sono permanece um dado da natureza difícil de eliminar e de explorar na sua totalidade, a verdade é que ele já não é mais aquele enclave e fortaleza que foi outrora, não sendo hoje capaz de resistir às operações do «capitalismo 24/7», nas quais ele se vê crescentemente “enredado”, racionalizado e instrumentalizado em ordem a uma aceleração da produtividade. Que o sono – e a escuridão que o acompanha – já não é hoje o baluarte natural do descanso e da regeneração humanas, assegurando uma desconexão integral dos estímulos activos no período de vigília, comprova-o o simples facto de, onde quer que nos encontremos, estarmos sempre rodeados de toda a sorte de objectos reluzentes e com iluminação própria. A simples experiência de uma dormida num qualquer quarto-standard de um Hotel com padrões tecnológicos globais é hoje uma batalha clamorosamente perdida face aos inúmeros focos de luminosidade que emanam de todo e qualquer ponto do espaço: é literalmente impossível desligar ou apagar todas as fontes de luz: «Pesquisas recentes mostram que cresce exponencialmente o número de pessoas que acordam uma ou mais vezes durante a noite para consultar mensagens ou aceder aos seus dados. Dispomos de uma expressão recorrente e aparentemente inócua, inspirada nas máquinas: sleep mode. A ideia de um aparelho em modo de consumo reduzido e de prontidão transforma o sentido mais amplo do sono em mera condição adiada ou diminuída de operacionalidade e acesso. Ela supera a lógica do desligado/ligado, de maneira que nada está de facto “desligado” e nunca há um estado real de repouso.» (p. 13). Eis, em traços largos, o objecto de reflexão de Jonathan Crary em 24/7: Late Capitalism and the Ends of Sleep. O sono é a derradeira afronta à voracidade do capitalismo contemporâneo. Ele é a única “condição natural” que subsiste e de que o «capitalismo 24/7» não consegue apropriar-se na íntegra. Todavia, não é menos certo que o nexo moderno entre o sentido da «propriedade privada» e o direito ou o privilégio de um «sono tranquilo» está hoje a desfazer-se por todos os lados. O sono é a modalidade por excelência do tempo vivido que assegura uma interrupção e um desligamento das redes e dos dispositivos tecnológicos para que entremos num estado de inactividade e de inutilidade. O sono é, por isso, o estado de uma pura «inoperosidade» (Giorgio Agamben) que resiste, tanto quanto pode, à implacável financeirização da vida e do mundo sob o «regime 24/7». Mas uma vez que fomos expropriados dessa experiência que até há bem pouco tempo julgávamos inalienável e que consiste na faculdade de “sonhar acordado”, que saibamos ao menos “sonhar com o sono” e “dormir em paz”. |
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