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Livros que nos pertencem ou uma sabática em Jerusalém
António Bento · quarta, 17 de junho de 2015 · @@y8Xxv
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21979 visitas Esta é a história de como dois leitores vorazes se encontraram no exercício da sua insaciável paixão de coleccionadores de livros. Ambos são implacáveis predadores de livros dessa biblioteca infinita que dá pelo nome de Judaica. Falo-vos de Gershom Scholem e de Yosef Haym Yerushalmi. De dois recolectores ou resgatadores de livros. Gershom Scholem (1897-1982) nasceu em Berlim. Aos 26 anos, imbuído do ideal do sionismo cultural, mas sobretudo em busca das raízes ocultas de uma história herética do judaísmo, emigra para a Palestina, então sob mandato britânico. Scholem é conhecido por ter forjado uma cátedra nova para si mesmo na Universidade Hebraica de Jerusalém. Fundador dos estudos modernos sobre a Kabbalah, Scholem veio a ser o primeiro professor de Misticismo Judaico no estabelecimento de ensino do Monte Scopus em Jerusalém, um excelente lugar para situar uma universidade, já que falamos de um privilegiado ponto de observação da Cidade Santa do qual se avista o Domo da Rocha e o Mar Morto. As suas obras mais conhecidas são porventura As Grandes Correntes da Mística Judaica e Shabbetai Sevi: O Messias Místico. Gershom Scholem foi amigo de dois dos maiores filósofos do século XX, Walter Benjamin e Leo Strauss, com os quais copiosamente se correspondeu. As obras de Scholem inspiraram ou influenciaram directamente escritores da talha de Jorge Luís Borges, ou escritores e académicos como Umberto Eco, George Steiner, Harold Bloom, Jacques Derrida, Giorgio Agamben, etc. Yosef Haym Yerushalmi (1932-2009) nasceu no bairro de Bronx, Nova Iorque, filho de emigrantes russos. Em criança recebe uma educação religiosa e estuda hebreu com o pai. Licencia-se na Yeshiva University. Em 1953 começa a frequentar o Jewish Theological Seminary, até que, em 1957, é ordenado rabi. Em 1966, sob a direcção de Salo Wittmayer Baron, doutora-se na Universidade de Columbia. Se bem que askenazi, Yerushalmi ensina História Judaica e Civilização Sefardita na Universidade de Harvard. Tal como o seu mestre Gershom Scholem, recebeu inúmeros prémios e solenes honrarias ao longo da vida. As suas obras mais conhecidas são Zakhor: História Judaica e Memória Judaica e Da Corte em Espanha ao Gueto em Itália: Isaac (Fernando) Cardoso e o marranismo no século XVII. Esta última obra é uma monumental biografia de um cristão-novo português (natural de Celorico da Beira ou de Trancoso, conforme as fontes). Pois bem, uma vez sumariamente apresentados os homens, passemos então aos seus actos. A um certo tipo de actos que apenas os homens que são também obsessivos coleccionadores de livros serão capazes de compreender. Ao que parece, Gershom Scholem teria um hábito terrível: a primeira coisa que fazia quando entrava na casa de algum amigo ou discípulo era encaminhar-se sorrateiramente para a biblioteca, submetendo-a a uma rápida, mas minuciosa inspecção, ou melhor, a uma obscena devassa. Se por acaso Scholem encontrava um livro que não possuía, mas que julgava dever possuir, o anfitrião podia muito bem ter a certeza de que nunca mais lhe poria os olhos em cima. Acto contínuo, Scholem retirava sofregamente esse livro da prateleira, pronunciando lentamente as fatais palavras: «Este livro deve pertencer-me». Fosse por esta ou por aquela razão, a verdade é que o anfitrião em causa dificilmente conseguia recusar ou contrariar este súbito, intenso e estranho sentido da propriedade que se apoderava do estudioso da Kabbalah. Como se a verdadeira liberdade de um determinado livro fosse ele estar algures nas suas estantes. Talvez, enfim, Scholem pertencesse à raça daqueles coleccionadores que podem adoecer gravemente, quer porque perderam um livro, quer porque não se importam de cometer um crime se essa for a única maneira de o adquirir. Ao contrário do que sugere o adágio latino habent sua fata libelli, para estes homens não são os livros que têm um destino, mas os exemplares de cada livro. E mal um homem destes pega num livro e abre as suas páginas é como se esfregasse a lâmpada de Aladino e como se esse livro acabasse de ver de novo a luz do dia após anos ou mesmo séculos de escuridão. O seu sentido de posse é confirmado pelo calafrio que sente no momento da sua aquisição. Ele é o herdeiro destinado desse exemplar e por isso se sente autorizado a olhar para a distância de onde esse livro vem, sabendo que o livro encontrou finalmente o seu leitor, o homem destinado aos seus símbolos. Foi precisamente isto que aconteceu em 1966, quando Scholem, acompanhado da sua mulher Fania, visita Yerushalmi, que entretanto gozava um ano de sabática em Jerusalém. Scholem entra no apartamento de Yerushalmi e eis que num instante se encontra diante de uma estante de onde avidamente retira um livro fininho: «Mas… este livro deve ser meu…» Tratava-se de um pequeno livro em inglês, publicado por uma obscura editora de Bombaim ou de Calcutá, pelo qual Yerushalmi teria pago menos de cinco dólares. Nessa altura, o estudioso dos marranos portugueses coleccionava livros de Judaica indianos. Ao que parece, esses livros estavam escritos em diferentes línguas: ora apareciam em hebreu, ora em judeo-árabe, ora em marathi, a língua dos Benei Israel (judeus instalados na Índia já desde antes da destruição do Segundo Templo), ora ainda em malayalam, a língua falada pelos judeus de Cochim. Esse enigmático livro cujo estranho autor indiano se apresentava não como um «israelita», mas como um «jerusalemita», versava, segundo o seu ex-proprietário, alguns aspectos da Kabbalah. De acordo com Yerushalmi, o conteúdo do livrinho seria um tanto ou quanto anódino. Mas esta sua opinião é fácil de explicar: enquanto Scholem concentra todos os seus esforços na Kabbalah e no Misticismo Judaico, o objecto de estudo de Yerushalmi é o Messianismo Judeu. Por conseguinte, uma vez que falava de Kabbalah, o livro «deveria pertencer» a Scholem. Todavia, que o autor do livro assinasse como jerusalemita e que o apelido do aspirante à sua posse se chame Yerushalmi, não é, talvez, um facto simples, como adiante se verá. Significa porventura que ambos – o jerusalemita e Yerushalmi – são exilados de Jerusalém. Uma vez retirados da biblioteca, Scholem e o seu anfitrião dirigem-se para a sala de estar. É então que Yerushalmi decide falar em voz alta, para que todos os presentes possam ouvir: «Muito bem, o livro é seu, mas o que é que me dá em troca?». «Quer tiragens à parte» – pergunta Scholem. «Não, obrigado. Já tenho todas as tiragens à parte que existem.» «– Nesse caso, o que é que deseja?». Yerushalmi, que conhecia bem a biblioteca de Scholem, responde-lhe: «Se esse livro lhe pertence, há um livro na sua biblioteca que também “deve pertencer-me”, uma vez que você não sabe ler espanhol». Scholem arregala os olhos de espanto e pergunta: «Mas que livro é que pode ser esse?» Afectando um fingido desprendimento, Yerushalmi replica-lhe: «Mazhor Moguntiai» (mazhor é um livro de orações e moguntiai é a forma adjectiva hebraica do nome latino de Mainz, Moguntia). De acordo com o relato de Yerushalmi, este mazhor de Mainz seria um dos mais raros exemplares de judaica escrito em língua castelhana. Além do mais, existiriam, segundo as suas contas, apenas quatro ou cinco exemplares, e todos eles apenas em bibliotecas. Naturalmente, este exemplar não foi impresso em Mainz, mas muito provavelmente numa das várias tipografias de judeus-novos portugueses de Amesterdão, no início do século XVII. Podemos até arriscar e conceber que o mazhor de Mainz saiu muito provavelmente da casa impressora do português Menasseh ben Israel (Manuel Dias Soeiro). Ainda amedrontados pela memória viva das perseguições da Inquisição na Península Ibérica, e receosos da censura das autoridades calvinistas, era prática corrente que os ex-cristãos-novos de Amesterdão fizessem imprimir as suas obras com falsos lugares de impressão. Que o diga o santo Espinosa! Neste passo da história, intervém Fania, mulher de Scholem. Estupefacta e embaraçada, esmagando porventura a beata do último cigarro no cinzeiro da sala de estar, lança um olhar ameaçador ao marido e diz-lhe: «Vá lá, Gershom, dá-lhe o livro, por favor». Mas eis que de repente Scholem franze o cenho com uma expressão muito séria: «Não posso fazer isso. E tenho que lhe explicar porquê.» – diz ele. «Este Mazhor Moguntiai pertenceu a Charles Tiel, que foi quem conduziu as brigadas judaicas a Jerusalém em 1948. O livro pertencia à sua família, uma família de origem sefardita. Uma vez vi esse livro em casa dele e pedi-lho. E Charles Tiel disse-me: “Se um dia Jerusalém for reunificada, dar-lhe-ei esse livro”». E, de facto, assim aconteceu, pois em 1967 Tiel ofereceu o livro a Scholem. Em suma, tal era a carga emocional associada a esse livro que Yerushalmi não insistiu mais. Todavia, não se deu facilmente por vencido, sabendo, como sabia, que na biblioteca de Scholem outros livros havia que «deveriam pertencer-lhe». A ele, Yerushalmi, que gozava uma sabática em Jerusalém e que aí aprofundava os seus estudos no Messianismo Judeu. Foi então que descobriu e tocou, como que por efeito de uma insondável atracção magnética, uma raridade de menor importância, mas, em todo o caso, uma raridade. Tratava-se do livro Bé-`Iqvot Machiah (Nos passos do Messias), uma recolha de textos do profeta de Shabbetai Sevi, Nathan de Gaza, que Gershom Scholem tinha publicado no final da guerra numa edição limitada de… 104 exemplares. Já a noite ia alta quando Yerushalmi acompanhou Scholem a casa, o nº 28 da Rua Abravanel em Jerusalém. Scholem foi buscar o livro à biblioteca, redigiu uma longa e amável dedicatória e ofereceu o livro a Yerushalmi. Aquele livro, pode agora dizer-se, «pertencia-lhe». Em que medida Yerushalmi e Scholem (Shalom) permanecem, também eles, exilados de Jerusalém, não o podemos saber.
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