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Um campo de futebol não tem de ser um campo de concentração: polícia soberana e estado de excepção
António Bento · quarta, 20 de maio de 2015 · @@y8Xxv
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21971 visitas Após quatro infinitos dias de jornada num vagão de comboio onde seres humanos de ambos os sexos e de todas as idades viajam comprimidos como gado, fazendo as suas necessidades no próprio vagão, Primo Levi chega finalmente ao destino: Auschwitz. Não bebera uma única gota de água durante a viagem para o Inferno: «Descemos, mandaram-nos entrar para um local amplo e vazio, fracamente aquecido. Temos tanta sede! O débil barulho da água nos radiadores torna-nos ferozes: não bebemos há quatro dias…» Uma vez o número de prisioneiro tatuado no braço esquerdo, finalmente “instalado” no Block que lhe estava destinado e atormentado pela sede furiosa da viagem, eis o que Primo Levi ouve da boca de um Kapo do campo de concentração: «Aqui já não estais nas vossas casas. Daqui não se sai a não ser pela Chaminé». E Primo Levi prossegue: «empurrado pela sede, descobri, no lado de fora de uma janela, um belo pedaço de gelo ao meu alcance. Abri a janela, arranquei o pedaço de gelo, mas imediatamente avançou um matulão que andava lá fora e mo tirou brutalmente. – Warum? – perguntei-lhe no meu pobre alemão. – Hier ist kein warum! (aqui não há porquês) respondeu-me, empurrando-me para dentro à força» (P. Levi, Se isto é um homem, 28).
No passado domingo, o cidadão José Magalhães levou os seus filhos menores (um de nove anos e outro de treze anos) e o seu pai (um idoso) ao futebol. Foram em família alargada ver um jogo de futebol que poderia levar o Benfica ao título. Eram benfiquistas, claro está. Uma vez o jogo terminado, ficaram encarcerados no estádio municipal de Guimarães por um período de 45 minutos. Entretanto, com as tochas e os foguetes lançados ao terreno de jogo, com a concentração de 15 mil pessoas comprimidas no espaço exíguo e sufocante das galerias do estádio, o filho mais novo de José Magalhães começa a sentir-se mal. Estava desidratado e precisava de beber imediatamente água para não desmaiar. Assustado, o pai da criança força a saída do estádio. Alguns agentes da PSP no portão acedem aos seus insistentes pedidos. Quebrando, com bom senso, as regras superiores que determinaram o «estado de excepção» vigente no campo de futebol, esses agentes deixam-no finalmente sair, juntamente com as crianças e com o avô de ambas. No testemunho público que prestará na manhã do dia seguinte, já na companhia da sua advogada, o cidadão José Magalhães agradece penhorada e sentidamente o gesto desses agentes. Desobedecendo corajosamente ao superior hierárquico, estes tinham criado uma excepção ao «estado de excepção». O resto da história é mais ou menos conhecido: uma vez fora do estádio, o responsável pela Investigação Criminal da PSP de Guimarães, comandante Filipe Macedo Silva, espanca selvaticamente José Magalhães e o seu idoso pai na presença de várias testemunhas. Azar do polícia, os seus actos e os seus gestos foram capturados e registados por câmaras de televisão. Julgamos saber que quando não há vídeos, os polícias ficam, por regra, impunes e os cidadãos são por vezes acusados e condenados com recurso a mentiras e a provas forjadas. No caso em apreço, existe um vídeo que mostra o intolerável sadismo de um subcomissário da polícia perante uma família. Dispomos também de um testemunho de uma cidadã que passava pelo local no momento da agressão. Chama-se Marta Santos Silva e é advogada. Eis o seu depoimento (que grosso modo coincide com as declarações fornecidas pela própria vítima): «O menino mais pequenino vem com os ombros já caídos e vem já com ar cambaleante. De facto, fiquei com a nítida sensação que o menino ia desfalecer. Eu levava comigo uma garrafa de água no saco e disse-lhe: “Olha, bebe essa água que já ficas bem”». Num outro vídeo podemos ainda ouvir o menino de nove anos a chorar e a gritar: «O meu pai não fez nada! O meu pai só fez aquilo porque eu estava cheio de sede!» A história contada em exórdio possui mais do que meras analogias acidentais com o episódio da brutal agressão a José Magalhães. Em primeiro lugar, o leitmotiv é semelhante: a necessidade imperiosa de beber água num estado de desespero; em segundo lugar, em ambas as situações os protagonistas encontram-se submetidos a um «estado de excepção», seja porque estão num campo de concentração, seja porque se vêem encurralados num campo de futebol; em terceiro lugar, em ambos os casos as perguntas das vítimas não só não são atendidas como são brutalmente interrompidas mediante o exercício de uma violência física – feita de ânsias musculares e paragens cerebrais – repugnante e injustificável. «Quando o agente se dirigiu a mim a perguntar o que se passava e por que tinha saído lá de dentro, estava a explicar-lhe o que se estava a passar no interior do estádio e… de um momento para o outro, dou com ele em cima de mim à bastonada», declara José Magalhães. Eis a questão: o estádio de futebol do Vitória de Guimarães funciona aqui como um autêntico campo de concentração. Os espectadores que nele entram serão submetidos, no decorrer do jogo e após o jogo, ao que os juristas nazis chamavam Schutzhaft (detenção preventiva). Na medida em que permite colocar indivíduos «sob detenção», independentemente de um qualquer comportamento relevante do ponto de vista penal, e com o fim único de evitar um perigo para a «segurança do Estado», os espectadores de um mero jogo de futebol são de repente equiparados a prisioneiros e tratados como tal. Por força do «estado de excepção» posto em acto pelas forças policiais, os espectadores de um jogo de futebol transformam-se ipso facto em detidos, sujeitos passivos e a-juridícos, completamente separados da alçada das leis e do controlo judicial, obrigados a uma detenção indefinida, tanto no sentido de um confinamento espacial rigorosamente delimitado como no sentido temporal da expressão. Sob este ponto de vista, os campos de futebol são hoje autênticos centros de detenção e espaços concentracionários submetidos a protocolos policiais próprios do «estado de sítio» e da «lei marcial». Se «soberano», como pretende o jurista Carl Schmitt, é «aquele que decide sobre o estado de excepção», então podemos afirmar que nos espaços físicos dos actuais campos de futebol a polícia é absolutamente soberana, porquanto no exercício das suas funções ela está investida de «plenos poderes» – precisamente uma das formas de acção ou modalidades do poder executivo durante um «estado de excepção». É neste sentido que os «poderes de emergência» da polícia contemporânea fazem desta uma «polícia soberana». A crescente transformação de medidas provisórias e excepcionais em técnicas normais de governo fazem do «estado de excepção» instaurado pela polícia soberana um instrumento de governo que ameaça transformar a estrutura e a própria natureza das constituições democráticas. Com isto, o «estado de excepção» deixa de ser referir a uma situação extrema e provisória de verdadeiro perigo e tende a confundir-se cada vez mais com a própria norma jurídica. Cabe agora perguntar: por que razão nos sentimos tão chocados com as imagens apresentadas nos vídeos que retratam a violência policial em Guimarães? Por que razão tais imagens subitamente se tornaram, como agora se diz, “virais”? Que efeitos têm essas imagens, e as discussões que elas geram, na mente e no comportamento dos “cidadãos/telespectadores”? A resposta a estas perguntas exige uma reflexão sobre o instituto da polícia. Walter Benjamin foi um dos pensadores do século XX que mais aprofundadamente reflectiu sobre o moderno instituto jurídico da polícia (Para uma crítica da violência, 1921). Na óptica do filósofo, uma crítica puramente moral da violência é tão injustificada quão impotente. Na verdade, os ataques meramente moralistas e meramente pacifistas contra a violência padecem habitualmente de falta de pertinência e de eficácia. A razão é simples: tais ataques nunca ou raramente apreendem a essência jurídica da violência, o facto de ser na violência e pela violência que se constitui a ordem do direito. Para compreendermos adequadamente o princípio da violência policial torna-se indispensável clarificar a noção de «ameaça», a ameaça do direito que constitui essa violência. Uma tal ameaça, para ser efectiva, deve permanecer necessariamente indeterminada. Ora, Benjamin acredita que, enquanto meio, toda a violência funda ou conserva o direito. De outro modo a violência renunciaria a qualquer valor ou positividade. Idealmente, deveríamos poder distinguir a violência como exercício do direito e o direito como exercício da violência. Contudo, na violência policial não é isso que acontece. Aqui estamos perante um ponto de indistinção entre o direito e a violência. Com efeito, no poder da polícia, considera Benjamin, dá-se uma amálgama e uma indistinção entre a violência que funda direito e a violência que conserva direito. Daí, segundo Benjamin, a particular repugnância dos cidadãos pela polícia. Daí também que a «infâmia da polícia» se deva, no entender de Benjamin, ao facto de nela se encontrar suspensa, como num verdadeiro estado de excepção institucionalizado, a separação entre a violência que funda o direito e a violência que conserva o direito, podendo a polícia outorgar-se permanentemente novos fins e prescindindo para tal de uma legitimação adequada. Daí, finalmente, a inutilidade e a impotência da conversa jornalística em torno da «proporcionalidade» da violência policial. Com a instituição da polícia moderna jamais sabemos ao certo com quem lidamos. A razão está em que os limites do exercício da violência policial são, no fundo, indetermináveis. A esta ausência de uma fronteira nítida entre as duas violências, a esta indistinção ou contaminação entre a violência que funda direito e a violência que conserva direito chama Walter Benjamin a «ignomínia da polícia». Ela é um sinal de que há «algo corrompido no coração do próprio direito». Na verdade, a polícia moderna caracteriza-se pela ausência de rosto. O seu poder é um poder sem figura, um poder anónimo e espectral, que se manifesta sobretudo através da sua invisibilidade e da sua eficácia. Num certo sentido, a polícia é sempre mais e sempre menos do que a polícia. Daí que nenhuma imagem da acção da polícia, a começar por aquela que as televisões nos mostraram em Guimarães, possa restituir a figura da polícia. A obscenidade da polícia está precisamente em ela ser uma violência sem figura. Nas situações de excepção a polícia moderna produz a própria lei precisamente onde é pressuposto que ela se limite apenas a aplicá-la. Na contemporaneidade, sabemo-lo, cabe à polícia uma ignominiosa função de legislação. E como, em certa medida, a polícia é o próprio Estado, no sentido de que é a manifestação concreta do poder e do espírito do próprio Estado, a sua natural falta de limites não permite que se a ataque sem que com isso se ataque também o próprio Estado. Este o ponto limite de qualquer crítica consequente da violência policial. Nas democracias modernas, onde a violência jurídica degenera, o poder da polícia repugna-nos não apenas porque funda violência jurídica no preciso momento em que é chamada a conservá-la, mas porque o principio da sua eficácia jurídica depende de uma corrupção do próprio direito e da violência jurídica de que o direito policial se apodera. O princípio do poder policial corrompe inevitavelmente o princípio democrático. Estando em abstracto destinado a protegê-lo, com o processo da sua autonomização técnica a violência policial torna-se incontrolável. Afectada por uma degenerescência do direito, a polícia moderna ataca o próprio direito no seu direito ao direito. Eis a lição da violência policial tal como esta se deu a ver no campo de futebol do Vitória de Guimarães. |
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