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Juramento e dívida
António Bento · quarta, 15 de abril de 2015 · @@y8Xxv
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21974 visitas O juramento capitalizou-se, isto é, ele entrou na devoradora ordem de culto do capital. Vejamos. Nos nossos pesadelos quotidianos que outra forma mais efectiva e completamente dessacralizada haverá hoje em dia de juramento do que uma letra de banco ou uma garantia bancária? Não é sequer necessário estudar a fundo as fontes do juramento no direito canónico e discutir a distinção – formal e material, medieval e moderna – entre juramento assertório e juramento promissório, nem tão-pouco fazer muito caso da distinção técnica entre juramento decisório e juramento supletório nos códigos de processo civil. O problema, com a actual “crise económico-financeira”, como qualquer cidadão preocupado com os assuntos humanos facilmente constata, está precisamente na desvalorização acelerada de qualquer garantia ou seguro. Nenhuma garantia está garantida, nenhuma garantia dá qualquer garantia. Todavia, a ficção política da garantia, que mais não é do que a figura ou o esquema da confiança recíproca pactuada, persiste – aparentemente ineliminável. Levanta-se então o problema: como dar corpo e comunidade a essa ficção – uma vez que qualquer garantia política começa por ser a garantia da posse de um corpo político comum? Ponha-se a seguinte hipótese: nas sociedades actuais, tal como por vezes sucedeu na longa e experimentada sociedade feudal, há inúmeros juramentos de fidelidade de carácter privado… e, não obstante, de carácter político. Os juramentos eram então – e são-no hoje de forma superlativa – utilizados para reforçar a promessa unilateral de honrar as dívidas e os pactos entre os indivíduos. Isto significa que não há juramento que vigore sem a formação e a activação de uma consciência de culpa. Disso temos um demoníaco exemplo na língua alemã, à qual actualmente todos os povos europeus obedecem sem chiar, em que a palavra Schuld significa tanto culpa como dívida. É, aliás, neste sentido que Walter Benjamin – um judeu alemão que se suicidou em fuga aos zelosos funcionários Terceiro Reich – pôde afirmar que «o capitalismo é uma pura religião de culto, talvez a mais extrema que alguma vez existiu. Uma imensa consciência de culpa, incapaz de redenção, apodera-se deste culto, e nele a culpa, em vez de ser redimida, é universalizada e gravada na consciência». Mas regressemos aos juramentos. Mais tarde, durante a transição da Baixa Idade Média para a protomodernidade, a promessa solene substituiu o juramento, ou melhor, tornou-se na sua máscara dessacralizada. A promessa solene está algures entre o juramento, propriamente dito, e a promessa de fidelidade. Ela agiliza ou facilita os negócios jurídicos num mundo onde não há tempo para perder, pois “tempo é dinheiro”. Deste ponto de vista, o desaparecimento, ou antes, a dissimulação ou ocultamento do juramento na contemporaneidade é uma das consequências de uma certa fé no progresso, em particular quando ela, como hoje, é alimentada e conduzida por uma «mão invisível» providencial, completamente obscura e cega, transformada em ideologia e dogmática do “crescimento”, ou, como agora é correcto dizer, “sustentabilidade”. Mas, de um ponto de vista jurídico moderno, o que está principalmente em causa no problema do juramento são os vínculos recíprocos que sustentam uma dada comunidade política. Esses vínculos são como cordas lançadas a todos os pontos – os fixos e os soltos. Ora, de acordo com a hipótese atrás enunciada, pode dizer-se que os vínculos baseados em juramentos entre associados tendencialmente do mesmo nível se manifestam quer sob a forma de pactos jurados («conjuratio», «conspiratio») entre poucos cidadãos (aristocracia, oligarquia, minoria), quer sob a forma de um consenso jurado (consensus iuris) entre o maior número possível de cidadãos (democracia, demagogia, maioria). Desta fricção ressente-se a própria essência, tanto quanto a prática ou a ritualização e processualização do juramento contemporâneo. Mas os consensos jurados, que hoje efectivamente actuam na esfera material do político, tornam-se cada vez menos públicos, isto é, cada vez são mais e mais objecto de um processo de privatização que os despolitiza e invisibiliza. A percepção de que se concluem nas costas da maioria dos cidadãos, e contra as suas vontades, pactos jurados não autorizados, é hoje cada vez mais impressiva… e efectiva nos seus próprios propósitos. Por exemplo, a actual promessa de fidelidade do “actor político” ao “agente financeiro” é um flagrante exemplo de dependência política ajuramentada, um exemplo, em suma, da assimetria original entre o jurador ou o devedor da promessa e o credor do juramento ou o cobrador da promessa. O que é o “memorando de ajustamento” português senão um juramento de pagamento de uma dívida? É, pois, na intersecção da esfera da finança com a esfera estadual (que obriga os estados e os povos a um juramento promissório imprescritível, sob pena de severas chantagens ou sanções) que muitas vezes hoje se observa a prática do juramento em toda a sua omnisciente obscenidade. Ao contrário o que alguns julgam, não se dá o caso de que o juramento como instrumento coercivo dotado de um fundamento religioso tenha sido francamente abjurado ou definitivamente expulso da esfera dos juramentos civícos que constituem o fundamento das comunidades políticas durante a modernidade. Dir-se-ia que também aqui ele se limitou a fundar as relações políticas e as relações económicas em bases éticas. Já só disporíamos de juramentos cívicos ou de vínculos recíprocos fundados na mais pura das razões ao serviço de um dever moral de verdade. Trata-se, parece, daquela porção de contratualismo reconduzível ao direito natural moderno. Todavia, o problema do juramento como «contrato de status» ou, para usar uma imagem ainda teológico-política, como «matrimónio político», permanece bem vivo sob a sua forma económica. Ao mesmo tempo, dentro da assim chamada «ética laica», que alguns glosam como «ética desarmada», abomina-se, por assim dizer, o juramento como um instrumento de dominação que visa transformar as obrigações jurídicas comportamentais externas em obrigações de consciência. Isto faz-nos pensar que a secularização ou dessacralização do juramento não é nada do que à primeira vista pode a alguns parecer. Isto é, ela não é uma abolição ou suavização do juramento, e hoje é mesmo cada vez menos uma limitação ou rarefacção do juramento como instrumento de prevenção do alastramento dos perjúrios – como o foi noutros tempos. É outra coisa: transformou-se. Onde quer que hoje exista um juramento, nomeadamente sob as suas formas e fórmulas financeiras, há com toda a certeza uma forma extrema de dependência, ou um vínculo fundado numa dada relação entre um credor e um devedor. A credibilidade, sob este estrito aspecto, não é mais do que a capacidade de pagar uma dívida entretanto contraída. Deste ponto de vista, a produção de credibilidade significa forçosamente produção de dívida. Sem juramentos nenhuma dívida poderá subsistir por muito tempo. |
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