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Parábola da Corrupção: Nietzsche e a Décadence
António Bento · quarta, 3 de dezembro de 2014 · @@y8Xxv
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22012 visitas «Esta liberalidade moral é um dos melhores sinais do nosso tempo. Se nos deparamos com casos em que ela forçosamente falta acreditamos estar diante de uma doença (o caso de Carlyle em Inglaterra, o caso de Ibsen na Noruega, o caso do pessimismo de Schopenhauer em toda a Europa). Se existe algo que nos reconcilia com a nossa época é a grande dose de imoralidade que esta permite, sem que por isso se pense menos bem dela. Muito pelo contrário! O que faz a superioridade da cultura sobre a incultura? Por exemplo, do Renascimento sobre a Idade Média? – Apenas uma pequena coisa: a grande quantidade de imoralidade que se lhe concede. Daqui se segue que todos os picos da evolução humana devam surgir, aos olhos do fanático moral, necessariamente como um non plus ultra da corrupção. Basta pensar no julgamento de Savonarola sobre Florença, no julgamento de Platão sobre a Atenas de Péricles, no julgamento de Rousseau sobre a sociedade de Voltaire, no julgamento dos alemães contra Goethe.» A Vontade de Poder, § 430
Estas são palavras de Friedrich Nietzsche, num texto amaldiçoado pelas circunstâncias que ditaram a sua publicação após a morte do autor: a entrega/depósito/venda dos manuscritos de A Vontade de Poder nos círculos anti-semitas alemães por sua irmã e “testamenteira”, Elisabeth Förster-Nietzsche. A posição de Nietzsche neste assunto é digna de um resumo: o que efectivamente move o moralista que em todas as épocas condena fanaticamente a corrupção como “escândalo dos escândalos” não são os instintos morais, mas os instintos de decadência traduzidos em fórmulas de moral. Digamos que toda a incerteza dos instintos se lhe apresenta inevitavelmente como «corrupção». Todavia, na genealogia dos valores morais efectuada pelo filósofo alemão não é a corrupção que é a maldição do homem, mas o amolecimento e o moralismo: «Os grandes momentos de cultura foram sempre, do ponto de vista moral, épocas de corrupção» (VP, § 31). Nietzsche distingue quatro sinais ou sintomas de corrupção: 1. a superstição; 2. o laxismo; 3. o refinamento da crueldade; 4. a corrupção dos costumes por suborno e por traição. Antes da descrição deste quatro sinais, dá-se ao leitor o quadro da «décadence» em que a «corrupção» aparece e opera. Toma a palavra “o cabeça de dinamite”: «O fenómeno da décadence é necessário para o desenvolvimento e para o progresso da vida, e não temos meios para suprimir esse fenómeno. Antes pelo contrário: a razão exige que lhe devolvamos os seus direitos. Tudo o que se considerou como remédio contra a degenerescência foram apenas paliativos contra alguns dos seus efeitos. Não se suprime a caducidade através das instituições. Nem a doença. E também não o vício. A decadência: o vício – o carácter vicioso; a enfermidade – o estado enfermiço; o crime – a criminalidade; o celibato – a esterilidade; o histerismo – a fraqueza da vontade… Toda a luta moral contra o vício, o luxo, o crime, e mesmo contra a doença, aparece como uma ingenuidade, como uma coisa supérflua: - não há emenda/reforma (contra o remorso). Em si mesma a décadence não é algo que se deva combater: ela é absolutamente necessária, e própria de cada época e de cada povo. Os métodos de tratamento, psicológicos e morais, não mudam a marcha da décadence, nem a entravam, porque são fisiologicamente iguais a zero» (VP, §§ 72 e 73). Nietzsche não procura julgar se a corrupção é «boa» ou «má», mas pergunta-se de que é que ela é um sintoma. Para Nietzsche a corrupção é um determinado estado que uma sociedade experimenta necessariamente de tempos a tempos. O filósofo chama a esta «superstição» que emerge com a corrupção um «pensar livre de segunda ordem». Assim que a superstição ganha força e intervém no conjunto da sociedade a fé nos antigos valores morais passa para segundo lugar, de modo que uma sociedade supersticiosa é forçosamente aquela em que já há muitos indivíduos e em que a apetência pelo individual e o primado do indivíduo sobre o rebanho se tornam potencialmente a regra: «O indivíduo necessita de uma legislação própria, de uma arte e de uma astúcia para a autoconservação, auto-elevação e auto-redenção» (Para Além do Bem e do Mal, § 262). Comparado com o «homem religioso», o «homem supersticioso» é muito mais «pessoa», afirma Nietzsche, isto é, este torna-se mais independente e quer afirmar sem entraves o seu «direito de indivíduo». Sob esta perspectiva, o cinismo dos corruptos não é mais do que um irónico sinal de distância face a tudo o que é geral, abstracto, colectivo, face, enfim, ao que ele chama «génio da espécie». Em segundo lugar, nos tempos corruptos acusa-se de «laxismo» a sociedade onde a corrupção ganha terreno. Todavia, a substituição das antigas virtudes bélicas e cívicas pelas novas comodidades da vida sob a forma de paixões privadas não é um mal em si mesmo e, muito menos, um amolecimento da sociedade: «É mesmo provável que, nas condições de corrupção, o poder e a violência da energia de um povo sejam agora maiores que nunca e que o indivíduo gaste agra mais do que outrora teria podido fazer – é que então não era suficientemente rico» (A Gaia Ciência, § 23). Em terceiro lugar, nas épocas de corrupção, como bem viu Benjamin Constant, o comércio e toda a sorte de tráfico sobrepõem-se à mera força bruta da guerra: «O comércio não é mais do que uma homenagem prestada à força do possuidor pelo aspirante à posse. É uma tentativa de obter de bom grado aquilo que já se não pretende conquistar pela violência. Um homem que fosse sempre o mais forte jamais teria a ideia do comércio. A experiência demonstra-lhe que a guerra o expõe a diversas resistências e perigos, levando-o a recorrer ao comércio, ou seja, a um meio mais suave e seguro de comprometer o interesse do outro naquilo que convém ao seu próprio interesse. A guerra nasce do impulso, o comércio do cálculo» (A liberdade dos antigos comparada à liberdade dos modernos, pp. 10-11). Todavia, contrariando a ingénua ideia liberal de que o «esprit de commerce» suplanta definitivamente o «esprit de conquête», para Nietzsche as épocas de corrupção não são mais doces nem mais brandas do que as épocas de guerra, antes se tornam mais e mais refinadas no uso político que dão à crueldade. É precisamente nessas épocas que é criada a maldade; é nelas que o prazer na maldade cresce e frutifica. Por conseguinte, as épocas de corrupção são necessariamente épocas trágicas: «O modo de ferir e de torturar os outros com palavras e olhares atinge o seu máximo desenvolvimento em épocas de corrupção. Os homens da corrupção mostram-se espirituosos e caluniadores. Eles sabem que existe outro género de assassinato além daquele que exige o punhal ou o golpe de mão. Eles sabem que tudo o que é bem dito é acreditado» (ibidem). Em quarto lugar, nas épocas de corrupção a venalidade, a prática do suborno e a traição atingem o auge, pois o amor do indivíduo ao seu ego é agora muito mais poderoso do que o amor à pátria ou à comunidade, envelhecidas, desgastadas, empurradas para o declínio e a morte. Daí que nelas se viva apenas para o presente imediato e que os indivíduos que aí operam se deixem corromper apenas “por hoje”, relegando e procrastinado o exercício da antiga virtude para o futuro. «Corrupção» – ajuíza Nietzsche em jeito de conclusão – «não passa de uma palavra injuriosa para os outonos de um povo» (ibidem). Estes «outonos de um povo» são necessariamente cruéis, não igualitários, elitistas, neles reinando o desprezo pela multidão e o horror ao conformismo. Todavia, a corrupção, como «expressão da anarquia que ameaça os instintos e abala o edifício das paixões que aspiram à vida tem uma aparência completamente diferente, conforme os tipos de vida em que se mostra» (Para Além do Bem e do Mal, § 258). A corrupção permite diferenciar os organismos em função do modo como estes respondem às tentações que as exigências da vida oferecem aos homens. Como escreveu George Orwell em 1984 a respeito do seu herói capturado no inferno transparente do Big Brother: «Tudo quanto sugerisse corrupção enchia-o sempre de uma louca esperança: – “Odeio a pureza, odeio a virtude! Só desejo que não haja no mundo uma única alma virtuosa. Quero toda a gente corrupta até à medula”» (1984, pp. 130-131). |
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