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“Não queremos a arte fácil”
Daniel Proença · quarta, 16 de julho de 2014 · A primeira coisa que salta à vista quando se fala com Roberto Querido, jovem ator da ESTE - Estação Teatral, é o seu óbvio e fervente amor pela Quinta Arte e tudo o que ela, perdoe-se o trocadilho, representa. Com toda a simplicidade e informalidade, fala da sua vida, das suas influências, das suas experiências – em suma, fala do que o faz ator. Não foram necessárias mais de quatro perguntas para o artista abrir o seu coração ao URBI. |
21981 visitas URBI et ORBI: Antes de mais: quem é Roberto Querido?
Roberto Querido: Sou um rapaz do campo. [risos] Tenho apenas 23 anos e sempre tive uma educação que me aproximou das pessoas. Sou isto, com toda a ambiguidade que isto pode ter, com tudo de bom e de mau que com isto pode vir, e tenho também sempre uma grande disponibilidade para descobrir as coisas. E com a minha idade, tenho ainda muito por descobrir. Sempre gostei muito de desporto e de movimento, sempre achei que essa era uma grande forma para mim de descobrir o mundo, e a partir daí identifiquei-me muito com o teatro. Lembro-me que a primeira vez que me apaixonei perdidamente pelo teatro foi quando fiz uma apresentação para a escola, dos Maias de Eça de Queirós. Havia vários grupos e cada grupo tinha um diferente tema para abordar. Eu fiquei com o meu amigo. Adaptei o texto, com o intuito de fazer teatro a partir dali. Então fiz um grande monólogo, três páginas, e decorámo-las. Lembro-me que no dia da apresentação estava super nervoso, e ia fazer o Ega, a falar com o Carlos da Maia, acho eu. Então estava eu a contracenar e o meu colega, cada vez que falava, eu sentia cá dentro que ele estava a fazer aquilo tudo mal! Representámos, dissemos o texto, e ao acabar a apresentação, toda a turma se levantou! Fiquei super emocionado com o público. E ali percebi que o teatro tinha esta ideia de procurar a proximidade com as pessoas, o teatro era uma forma de eu me aproximar delas. Eu nunca fui o aluno mais querido da minha turma, mas nesse dia tive proximidade com essas pessoas que me gozavam, que me tratavam mal. Até essas pessoas vieram e me disseram, “Gostei disso, boa.” Foram honestas comigo. Então entrei para o Histérico [grupo de teatro da Escola Secundária do Fundão], assim do nada, e do nada o professor responsável, o professor António Pereira deu-me a oportunidade de participar nos espetáculos que já estavam construídos. O prof. António teve este lado importante, que foi de cultivar dentro de mim esta procura do teatro. Participei num workshop da ESTE, que eu na altura nem sabia que existia. Gostava de teatro mas não sabia como o procurar aqui. Mais tarde tive uma master com o Nuno Pinto Custódio, e foi outra revolução na minha vida. De repente, tinha um ator à minha frente e tudo à volta já não existe. É como se tudo caísse para ele, uma espécie de energia a cair apenas nele e só se vê um corpo. Não está a fazer nada, mas estás atento a uma personagem. Uns olhos como os meus e como os teus, mas de repente, super brilhantes. Isto transformou mais uma vez a minha visão de teatro. Um ano depois fiz o meu primeiro espetáculo com a ESTE. Eram espetáculos-escola com o Nuno, de um rigor muito grande – atenção, porque ele era rigoroso, mas eu apercebi-me que existia ali um outro tipo de rigor. Esse espetáculo foi muito importante para mim, uma oportunidade de pegar nas ideias que tinha da minha formação e pô-las finalmente em prática. Mais tarde dei uma pequena assistência na mesma master, com o Nuno, e aprendi muito sobre o que era ensinar teatro. Tinha atores de grandes companhias, que apareciam na televisão, que me perguntavam como é que o Nuno iria reagir a determinadas propostas, e eu mesmo que não soubesse, estava confrontado com essas ideias, sentindo que eles me estavam a respeitar como professor. Tenho 23 anos, sou um rapaz do campo, com uma visão que, por pequena que seja, é uma visão daquilo a que quero chegar.
URBI et ORBI: Como é fazer teatro na ESTE?
Roberto Querido: Não nos preocupamos com o que o público vai achar. Aquilo que o público está a sentir é mais importante. A pessoa esquece-se, mas fica com imagens. 'Aquela imagem fez-me sentir isto' – e assim, vai levar aquela imagem para sempre. Mesmo que se esqueça, há ali uma empatia. Ficou com essa imagem, seja ela negativa ou positiva, empatizou com ela. É assim o nosso método de construção. Nós mostramos – mas é a tua imaginação que complementa. Não queremos a arte fácil. Não queremos dar de barato as coisas. Procuramos, sim, perceber o que é que pode motivar o público. De repente é o público, sentado, que está a viver o que se passa no palco. Através da percepção, através do corpo. Com estes princípios de que o teatro é uma coisa de ver, sentir e do tempo presente. Podíamos fazer um espetáculo inteiro e depois dizer, “Moral da história: este é o chefe, e o empregado ganhou-lhe.” Podíamos dizer isto, mas não nos interessa. Eu tenho muito pouca experiência, apesar de toda a vontade que tenho, mas em alguns espetáculos que já vi, os encenadores estão-se borrifando para a cumplicidade que podem ter com o público. Há mais uma necessidade de dizer que se fez teatro, basta dizer que as pessoas gostaram, ou que receberam muitas palmas no final do espetáculo. Nós não pretendemos obrigar o público a pensar algo: é o público que decide o espetáculo. Posso fazer a comparação com Bach. O Bach hoje já não está aqui para dizer o que é que quer que o público ache da música dele. Nós é que já interpretamos, sentimos quando ouvimos as músicas dele. Mas ele já não está cá – ele fez a música para que as pessoas a sentissem, para que as pessoas se apaixonassem por ela. E agora eu, por mais consciente que seja ou por mais ignorante que seja em relação à música, por mais que goste ou não goste, não tenho dúvidas nenhumas de que aquilo é música. Hoje, o teatro está desfalcado mesmo por causa disso. Hoje as pessoas vão ver um espetáculo de teatro porque lhes disseram que iam ver um espetáculo de teatro. Não estamos à procura de que as pessoas se sintam obrigadas a vir. As pessoas obrigam-se a elas próprias, porque sentem necessidade, porque lhes estamos a transmitir alguma coisa, sem lhes impingir as nossas ideias. Deixo a crítica ao teatro que aí está – é uma lição, porque não o desprezo – este teatro não é teatro. [risos] Porquê? O teatro está resumido a 'toma um texto, toma outro, vamos fazer assim um joguinhos quaisquer', em que as pessoas não estão a sentir nada. No final as pessoas batem palmas e pronto, aqui está a nossa peça de teatro. Não é assim que fazemos na ESTE.
URBI et ORBI: Até hoje, qual foi a experiência que mais te marcou no teatro?
Roberto Querido: Não penso que tenha havido uma. Isso seria ser desonesto para com todas a experiências que tive. Não sinto um grande à-vontade em parafrasear, mas há uma frase de Samuel Beckett que diz, “Try again. Fail again. Fail better.” Acertar e errar são a mesma coisa. Dão-te prismas diferentes, mas os dois dão-te a mesma coisa. Os dois fazem-te avançar, de formas diferentes. Ao errar tu limitas o teu caminho. A limitação dos erros é uma precisão. Ao perceber onde está o erro, avança-se. Uma atriz que me encantou quando a vi em palco foi Rosinda Costa, foi num espetáculo com condições péssimas no Teatro Agosto, mas nem por isso deixou de me encantar. Outra grande influência, e este tem a ver com a sua arte, que nem é tanto do teatro, tem um lado mais de contador de histórias: Leo Bassi. Foi uma experiência muito, muito forte para mim. Foi um espetáculo de duas horas que quando acaba, pareceram cinco minutos. E de repente, quando se começa a analisar – sentiste medo, sentiste tristeza, sentiste alegria, quiseste desaparecer dali, quiseste continuar ali, quiseste que aquilo não acabasse, foi um espetáculo poderosíssimo. Mais do que aprender teatro, aquilo foi uma lição de humanidade. Mas a maior experiência que há no teatro para mim é a relação que se pode ter com as pessoas. O encontro que proporciona. Essa experiência de encontro transforma o dia-a-dia. Esse encontro é o que os atores têm de proporcionar, e o encenador tem de saber fazer os atores proporcionar. Não é só a ação representada, mas também a ação de representar. Pode não haver história nenhuma. Há relacionamento entre personagens, e brincando com a vida e transportando para o teatro, criam-se histórias, transmitem-se imagens. E o teatro é o melhor método de transmissão de imagens porque está à tua frente. É um ator. É uma pessoa que está à tua frente, mas está a fazer um serial killer. E eu acredito que é um serial killer, sabendo que é um ator a representar um papel. Mas eu olho e só vejo o serial killer. Eu sei que o ator está ali, mas aquilo que eu estou a ver não é o ator. Estão-me a mentir e eu aceito que me mintam. Tem esta cumplicidade. E eu aceito isso. Porque eu sei que é o ator que ali está, à minha frente, eu posso lá ir e fazer-lhe assim no meio do espetáculo [bate na perna do repórter], e estragar-lhe aquilo tudo. Mas não vou porque quero ver o serial killer que ele está para ali a inventar. Que ele está para ali a mentir.
URBI et ORBI: Para terminar, como é trabalhar nesta companhia? Como te relacionas com os seus outros artistas?
Roberto Querido: Somos uma equipa. Quando deixei a minha equipa de futebol – isto para fazer a comparação – fui convidado para ficar nessa equipa, mesmo estando na universidade. E eu cá dentro queria continuar nessa equipa. Na universidade perdi um bocado esta experiência de companheirismo que uma equipa te pode dar. São experiências diferentes. Quando voltei aqui à ESTE, tive outra vez uma experiência de equipa, uma experiência de que quando me dói, dói a todos, sem que eu tenha de dizer que me dói. Estou aqui há pouquíssimo tempo, e sinto-me à vontade para desabafar sobre os meus problemas, até a nível pessoal. Mas quando é para criar, é também distinta esta ideia de que, OK, aqui estou eu e esta equipa em convívio, e aqui estou eu e esta equipa para fazer um trabalho. Sabemos a fronteira entre estas duas perspetivas e, sabendo esta fronteira, também às vezes as misturamos. |
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