Jornal Online da UBI, da Região e do RestoDirectora: Anabela Gradim |
A aldeia que o povo sonhou
David Garcia · quarta, 20 de agosto de 2014 · Hoje os Alares são ruínas no campo aberto da raia. Invasões francesas e o Maneta, uma utopia popular, um suposto intrujão, uma guerra entre povos, processos na justiça, expropriações – ingredientes de uma estória que as pedras ainda querem lembrar. |
Uma aldeia que não chegou a sê-lo |
22041 visitas 974, 733, 537… os últimos três censos (1991,2001,2011) dizem que o Rosmaninhal, a maior e fronteiriça freguesia do concelho de Idanha-a-Nova, perdeu 437 habitantes em vinte anos. Contando com mais uns poucos certamente de então para cá, são 2 habitantes por quilómetro quadrado: vidas, casas e terrenos vazios que ninguém parece querer vir ocupar. O observatório da ADRACES-Associação para o Desenvolvimento da Raia Centro-Sul, aponta um índice de envelhecimento de 977,5%.Os idosos são 55,3%, os jovens, 5,5%. A freguesia fica no extremo daquela zona em que, olhando para o sul do Tejo, se vê terras de Espanha. Seguindo até ao rio, são campos abertos, cheios na primavera do lilás do rosmaninho que baptizou o lugar. Zona de caça, são muitas as espécies de aves - desde da cotovia-de-poupa e a perdiz aos abutres, que nidificam nas escarpas do rio, e têm por aqui comedouros que servem de sustento às aves necrófagas. Os caminhos para a chegar ao rio vão ficando cada vez mais difíceis para um citadino, mas de repente, no que parece ser o meio do nada, aparecem casas em pedra, destelhadas, muitas, uma aldeia pequena, na verdade. Mas por aqui não há a ninguém, e há muito tempo. Invadidas pela vegetação, ainda são visíveis algumas as ruas por entre as ruínas. Que lugar é este? Quem morou aqui? Como a História grande muitas vezes ignora as estórias da história local, são locais que as investigam e conservam. Mário Lobato Chambino, 55 anos, licenciado em História pela Universidade Aberta, técnico superior na Escola Superior de Enfermagem de Castelo Branco, é um desses homens de afecto para com a terra em que nasceram, cujas tradições querem preservar. “Tenho-me esforçado por enalterecer o nome do Rosmaninhal de várias formas, quer dinamizando actividades, quer através da comunicação social quer através de publicações e sempre que estou com outras pessoas”, confessa, e uma dessas histórias é a dos Alares, terra que as gentes criaram no terreno difícil daquele extremo de Portugal, que um dia foram o garante da nacionalidade. Um dia houve aqui um castelo, dos muitos que guardavam a fronteira, que caído em ruína foi depois coberto pela construção do cemitério no topo da aldeia. Com a Europa e o espaço Schengen, já não são precisos. Mário Chambino conhece a realidade dos números. “Cada vez menos pessoas, residentes e visitantes, comércio pouco, cafés a fechar praticamente de dia, lugares de convívio nenhuns”, lamenta. O edifício mais novo da aldeia, simbolicamente, é dedicado aos mais velhos – o novo lar de terceira idade da Santa Casa da Misericórdia. Voltemos às ruinas. São dezenas de casas baixas destelhadas, pisos em terra, “feitos de bosta de vaca seca e barro”, paredes com xisto, sem janelas ou escadas, apenas uma porta para a rua. Viveram aqui famílias inteiras com 6 ou 7 filhos, como ainda há pouco tempo acontecia no interior. Ficamos a saber: estamos num lugar chamado Alares, terra que um dia prosperou mas acabou por ser abandonada na década de vinte do século. Parece que foi há pouco tempo. Quem vê as ruínas, julga que são antiquíssimas. Na documentação disponível, Alares e as vizinhas Cobeira e Cegonhas (mais pequenas, abandonadas também) aparecem só no século XIX. Para perceber a origem destes lugares remotos, temos de voltar às invasões francesas, mais precisamente à segunda, que passou por aqui. Saindo de Alcântara, em Espanha, Junot, à frente de um exército extenuado e descalço (“requisitou” todo o calçado daquela cidade espanhola para as suas tropas), envia as suas tropas por vários percursos, um deles seguindo de Segura até Castelo Branco. Com medo dos franceses, as populações fugiam para os campos, sobretudo mulheres e crianças. Hoje, olhando para esta extensão, parece impossível imaginar 20000 homens armados, canhões e cavalos a atravessar estas planícies de solidão. Aquartelados em Castelo Branco, as tropas desmoralizadas e indisciplinadas, para não falar dos desertores, aterrorizavam as terras em volta, pilhavam e roubavam, invadiam igrejas e chocavam a população. Junot, mesmo prometendo segurança e dizendo-se a serviço da libertação do povo, não podia ver tudo estando hospedado no Paço Episcopal de Castelo Branco, e com pressa de chegar a Lisboa. Terá sido neste contexto que gente fugida de Malpica e Monforte da Beira começou a cultivar “terrenos incultos, desbravando o mato, sabe Deus à custa de quantas fadigas e sacrifícios”, conta o nosso historiador. A Academia Real das Ciências de Lisboa, no seu História e Memórias, Tomo IV, em 1816, já refere estes “povos que temendo expor as suas searas à destruição do inimigo comum, procuraram um abrigo entre o Tejo e o Aravil, no monte da Cubeira e suas vizinhanças, Termo do Rosmaninhal, e ali fizeram as suas roças, semearam trigo, centeio e cevada muita parte com o sacho e enxada, e foi tal a produção, que o menos que tiveram foi quinze por um. No segundo ano tornaram a semear as mesmas terras e tiveram uma boa produção de batatas e de outros legumes, sendo tão fértil o terreno, que nascendo por acaso junto a uma das cabanas uma pevide de melancia, criou o pé sem cultura alguma doze melancias grandes e dezasseis pequenas”. Era um esconderijo praticamente perfeito – ainda hoje os caminhos são difíceis, ainda hoje surpreende haver tantas casas ali. Em poucos anos criou-se um povoado, todos eram iguais, o trabalho era duro mas rendia, e sem o de peso senhores ou soldados iluministas. Mas eis que chega o “vilão” desta história. Por volta de 1865, um perseguido político, o Visconde de Mourão, procura abrigo naquelas terras ermas sem lei, entre aquelas gentes simples que conheceram pouco mais da vida senão trabalho e o medo da fome. Passou ali uns meses e desapareceu, para regressar, munido de papéis, declarando-se dono das terras em que aquelas gentes dos Alares tinham começado a erguer a sua vida. Os habitantes aceitaram a situação sem contrariar, talvez por reverência demasiada às “escrituras”, e começaram a pagar o foro ao Visconde, agora proprietário de uma área enorme. Falecido o Visconde em 1920, foi a vez do herdeiros entrarem em cena, reclamando às populações que abandonassem os terrenos, as suas casas, em suma, a sua vida, a sua “terra”. Reclamaram por isso ao Governador Civil da altura, e o apoio jurídico entretanto contratado aconselha-as a permanecerem no lugar até se comprovar a propriedade, à altura tida duvidosa. Não estamos no século XII, na altura da Reconquista e das mercês. No princípio do século XX, isto ainda possível no interior de Portugal. Para evitarem chatices e demoras (há quem diga para fazerem lucro antes de serem descobertos), os herdeiros venderam os terrenos. Um, vendeu o terrenos aos habitantes dos Alares, que ali tencionavam criar o seu “povo”. Os outros venderam a sua parte aos habitantes do Rosmaninhal. Pormenor curioso, as escrituras determinam que os compradores “só pagarão os terrenos comprados quando estes estejam na posse pacífica dos mesmos”. Além disso, comenta Mário Chambino, são estranhos os valores, como se os herdeiros ao cobrarem um valor “tão inferior ao que na realidade valiam, (dessem) a entender que estavam a vender aquilo que não lhes pertencia, por isso tudo o que viesse era ganho”. Achando-se donos daquelas terras, os habitantes do Rosmaninhal intimaram os povos daquelas povoações, a começar pelo Alares, a abandonarem aquelas terra, chegando a ameaça-los de morte. Apenas podemos tentar pôr-nos no papel daquelas gentes, a maioria completamente analfabeta, apanhada entre doutores advogados, papéis, escrituras, e confrontada a abandonar o fruto do seu trabalho em troca de nada. Como os habitantes hesitassem, começou aquilo que ficou conhecida como a “Guerra dos Povos”, nome pomposo para o que foi na realidade uma série de rixas e confrontos, mas nem por isso menos destrutivas. Desde incendiarem as palhas e searas, destruírem as hortas, partindo as alfaias, os “legítimos donos”, os cerca de 2000 habitantes do Rosmaninhal, atormentavam a população dos Alares, muito inferior numericamente, chegando a agredir homens, mulheres e crianças, destruindo colmeias e os muitos potes de mel, a ponto de escorrer pelas ruas hoje cobertas de vegetação. Não eram tanto uma pilhagem, porque na pobreza dos tempos nada havia para roubar. Era a destruição do seu sustento e novamente a ameaça da fome. Também os povos das Cegonhas e Cobeira foram atacados, roubando-lhe toda bolota para os animais e matando a tiro e a foice mais de 300 cabeças de gado. O pastor só sobreviveu fugindo para o outro lado do rio, em Espanha. Enquanto as minúcias jurídicas continuavam em gabinetes almofadados, com folhetos e pareceres de um e de outro lado, as populações, assustadas e fartas, e aconselhadas pelos seus advogados, abandonam os Alares e as outras povoações. Uns foram para Malpica e Monforte, outros para terrenos próximos, comprados pelas gentes, e onde hoje existem as localidades ”herdeiras”: Soalheiras e Cegonhas Novas, anexas hoje da freguesia do Rosmaninhal. Nomeada uma comissão pelo Governo para estudar o caso, foi em 1929 que finalmente o caso se decidiu. O Decreto nº 17165, de terça-feira 30 de Julho de 1929, começa com uma série “considerandos”: que a questão “tem prejudicado não só os povos em conflito, mas a economia nacional, privando-a de 1000 moios de trigo ao ano”; que o “conflito não se pode resolver amigavelmente, por ser irrealizável congraçar na mesma solução mais de mil vontades”; que “não se pode resolver judicialmente, pois tratando-se de uma questão com mais de mil litigantes, as sucessivas habilitações impediriam o andamento do processo”, se decretava assim a expropriação dos terrenos, para depois reparti-los em partes iguais pelos interessados, o que deveria ser feito rapidamente para, ainda segundo o decreto “se não perder ainda mais uma colheita”. Tudo foi feito por sorteio, podendo as parcelas ser trocadas entre os proprietários, e resolveu-se assim, aparentemente, a questão. Mas os Alares continuaram desertos até hoje. E estas paredes teimosas contam a história de uma aldeia que esteve para nascer, do trabalho do povo que construiu o seu futuro do nada. Mas os Alares foram abandonados por questões jurídicas, disputas de terrenos, expropriações. Olhando as ruinas ao entardecer, fica a nostalgia e uma inquietação. Hoje, o Rosmaninhal, ali bem perto, é ameaçado pela interioridade e pela desertificação. Mais uns anos e as ruas e casas dos Alares, a estória da sua fundação e das rixas que a destruíram ficarão guardadas apenas nas monografias. Quem sabe o Rosmaninhal, seguindo o ritmo decadente dos censos, sem franceses, guerras ou viscondes, acabe por ter as suas ruas vazias e soterradas pelo tempo, e se calem um dia, também. |
GeoURBI:
|