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«ACUSO-ME…» – FRANZ KAFKA E A AUTO-CALÚNIA
António Bento · quarta, 23 de abril de 2014 · @@y8Xxv
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21964 visitas Como um dia observou Walter Benjamin: «A insistência de Kafka na Lei é o ponto morto da sua obra». Sensivelmente da mesma opinião é Gershom Scholem, sem dúvida o mais fino entre os inúmeros comentadores dos escritos do judeu checo: «Para nós restam somente os procedimentos de uma “Lei” que já não pode ser decifrada. Estes procedimentos tornaram-se a característica central da visão kafkiana». Com efeito, na mais conhecida das suas obras a insistência de Kafka na Lei mostra-nos até que ponto o processo por que passa Joseph K., submetido à penosa indecifrabilidade da Lei, é sem esperança, já que a Lei, na singular operação de destilação do Talmude que Kafka levou a cabo, é essencialmente uma Tradição (que em hebraico se diz «Kabbalah») fechada, não sendo os seus livros acessíveis aos acusados. Por conseguinte, que em toda a acusação haja uma beleza última que fulmina sem redimir; que aos olhos dos seguidores da Lei os acusados sejam terrivelmente belos; que na figura mesma de todas as modalidades da acusação (calúnia, injúria, difamação, vexame, ameaça) aflore do modo mais necessário tanto a vigência secreta da Lei quanto as possibilidades da sua transfiguração; que faça imperativamente parte das prescrições da Lei que o homem seja condenado não só sem culpa formada, mas mesmo sem o saber… tudo isso decorre necessariamente da certeza e do esplendor da própria Lei. Como diz o oficial no conto Na Colónia Penal: «Os meus julgamentos são feitos de acordo com o seguinte princípio: a culpa é sempre indubitável». Outro tanto observa o filho em Carta ao Pai: «Fizesse o que fizesse, acabava sempre por ter culpa… de certa maneira era castigado ainda antes de saber que tinha feito algo de mal». Finalmente, foi ainda a pensar naquele invencível «sentimento de culpa infinito» que assola o acusado que Franz Kafka pôde escrever no final de O Processo: «Ele teme que a vergonha lhe sobreviva». Se é verdade que a acusação é o motor oculto que move as obras de Franz Kafka, ela só é elevada à sua máxima potência na auto-calúnia. Daqui se segue uma provável chave da leitura, eventualmente válida para a obra de Kafka no seu conjunto. Pois não é assim, afinal, que começa O Processo? «Alguém devia ter caluniado Joseph K., porque, certa manhã, sem que ele tivesse feito qualquer mal, foi preso». Ora, daqui deduzem alguns dos estudiosos que hoje melhor reflectem sobre a obra de Franz Kafka (e Davide Stimilli em primeiro lugar) que a sinistra letra K. que percorre os contos do escritor, além de significar Kafka, evoca simultaneamente tanto a Kalumnia (calúnia) quanto o falso acusador (Kalumniator). E mais até do que a mera calúnia, a fantasmagórica personagem K. – que, de maneira indecifrável, se oculta no interior da letra K – revelaria a mais perversa de todas as acusações, isto é, a auto-calúnia ou a falsa acusação que um dia alguém intenta contra si mesmo. Sob esta perspectiva, K. designaria a inobjectivável figura do auto-caluniador: alguém que se acusa falsamente a si mesmo. Todos, enfim, julgamos saber que, de um ponto de vista estritamente jurídico, só há calúnia quando o acusador está inteiramente consciente e plenamente convicto da inocência do acusado. Na auto-calúnia, porém, o falso acusador sabe muito bem que está a mentir. Sabe, portanto, que está completamente inocente. Ainda assim, basta que ele se auto-acuse para que se torne imediatamente culpado, mesmo se a acusação é, como adivinhamos pelas fulgurantes parábolas de Kafka, “completamente”, “inteiramente” ou “redondamente” falsa ou apócrifa. «Só em atenção aos desesperados nos foi dada a esperança». Efectivamente. Com o seu gesto desesperado, o auto-acusador que intenta uma calúnia contra si mesmo põe directamente em causa a própria possibilidade da prossecução da acusação ao mesmo tempo que a reforça e a torna necessária. É assim em O Processo, em Carta ao Pai e Na Colónia Penal. Mediante a auto-calúnia, K. acusa-se da sua própria inocência. É certo que «a culpa é sempre indubitável», que não há pena sem culpa, e que, para que a pena esteja de antemão justificada, basta que a acusação não morra. E como poderia a acusação extinguir-se se o termo jurídico «accusare» deriva etimologicamente de «causa» e significa «pôr em causa»? Do mesmo modo, também não há julgamento ou sentença sem pena, precisamente porque toda a pena está já no julgamento ou na sentença. É, pois, a acusação, mais do que a própria culpa, e a acusação independentemente do cumprimento ou não da pena, que caracteriza a essência de todo o tribunal e de todo o processo kafkianamente entendidos. É precisamente isso que nas derradeiras páginas de O Processo o capelão da prisão dá a entender a K., quando, no termo da longa conversa que ambos mantêm na catedral, observa: «O tribunal não quer nada de ti. Ele acolhe-te quando vens, deixa-te ir embora quando vais». Em suma: “O tribunal não te acusa, ele limita-se a acolher a acusação que fazes a ti próprio». |
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