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Pequena meditação sobre o lixo
António Bento · quarta, 22 de janeiro de 2014 · @@y8Xxv
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21960 visitas O depósito e o tratamento de lixo em geral, e o depósito e o tratamento do lixo atómico em primeiro lugar, são, reconhecidamente, um complexo e delicado problema das sociedades contemporâneas. O motivo imediato desta pequena reflexão sobre o lixo é a actual operação de transferência das chamadas «armas químicas sírias»; contudo, a sua remota razão de ser mergulha as suas raízes mais fundo, e visa interrogar o dispositivo de formação da subjectividade na contemporaneidade. Muitos recordarão com facilidade a seguinte declaração do Livro I de O Capital de Karl Marx: «A riqueza das sociedades nas quais domina o modo de produção capitalista apresenta-se como uma imensa acumulação de mercadorias». Pois bem, em vista do nosso propósito modificaremos a palavra final desta sua célebre sentença: «A riqueza das sociedades nas quais domina o modo de produção capitalista apresenta-se como uma imensa acumulação de lixos.» A crer nos sinais disponíveis, jamais qualquer comunidade humana terá produzido tanta quantidade de lixo, tanta variedade de lixo e a tanta velocidade, como aquela que caracteriza as actuais sociedades contemporâneas, cuja organização do trabalho se funda na indústria e na alta tecnologia. Aliás, uma sociedade «rica» ou de «bem-estar» é, em definição liberal, aquela que produz «lixos» em variegada abundância. O lixo é, pois, um sintoma exterior de riqueza. E o lixo – de acordo com o princípio malthusiano que rege a sua toxicidade – cresce muito mais rapidamente do que os meios tradicionais disponíveis para o reciclar. Com efeito, os modos ditos naturais de tratar o lixo há muito tempo já que entraram em crise de obsolescência. A coisa atingiu tamanhas proporções ao ponto de dispormos hoje de uma autêntica plêiade de economistas, ambientalistas, sociólogos, activistas e jornalistas, conhecida por escola do «decrescimento», empenhada em reduzir a produção e em fazer do «decrescimento» um programa político universal. Vale, de resto, dizer que, para poderem ser consequentes com os princípios que enformam a sua doutrina, os próprios «decrescimentistas» reconhecerão de bom grado que produzem muito lixo científico, uma singular espécie de lixo de que se não fala tanto quanto se deveria falar, a qual, no entanto, pode ser extremamente perigosa e nociva para a saúde. O lugar próprio do lixo, explorando as potencialidades heurísticas de um interessante conceito do antropólogo Marc Augé, é um «não lugar». O que isto significa é que o lixo aparece como o lugar do que não está no seu lugar, de tal modo que o lugar-do-lixo ou um lugar-lixo é um «não lugar». O lixo, mormente o lixo tecnológico contemporâneo, é sempre aquele veneno que não está no sítio certo, algo que, por isso mesmo, tem que ser mudado permanentemente de sítio, com a secreta esperança de que nesse novo «sítio» a descobrir o lixo possa desaparecer como «lixo», extinguir-se, reactivar-se e reciclar-se. Por aqui se vê de que modo o «lixo» está submetido a uma singular lei do progresso: dado que é impossível reciclar ao ritmo a que se desperdiça, o lixo deve mudar constantemente de lugar para poder vir a estar em nenhum lugar. O problema é que vivemos numa época em que os lugares da terra estão, por assim dizer, todos ocupados e já não sobra hoje praticamente nenhum espaço para onde mudar os resíduos ou venenos de origem nuclear. Por causa de toda a sorte de lixos radioactivos altamente pestilentos, contaminadores e, no fundo, inextermináveis, o direito internacional público inventou uma entidade jurídica de excepção chamada «países de destino». De um ponto de vista especulativo, este conceito é assaz interessante porque significa que o lixo só tem futuro onde também lhe estiver atribuído um destino, ou seja, o lixo, em permanente peregrinação, anda sempre em busca de um destino providencial, no termo do qual, finalmente, ele possa repousar numa espécie de paz escatológica – algures, noutro lugar, que não o seu lugar de proveniência ou de origem. De modo que a condição ontológica do lixo é a de um exílio eterno. Sob este aspecto, há mais do que meras semelhanças ocasionais entre a condição política judaica sob o jugo do Galout e a condição originária de todo o dejecto tecnológico contemporâneo. Com efeito, de ora em diante, todo o lixo de excelência deverá possuir um porvir, um destino, em suma, uma identidade secreta e oculta que satisfaça a curiosidade de um novo e avançado tipo de explorador. Neste particular, o engenho humano tem ido tão longe que estes «não lugares» são já hoje objectos de visitas turísticas organizadas e acessíveis apenas a bolsas de excepção, pois não é a qualquer um que é dado poder fazer a experiência de um «não lugar» deste teor. E o que até há bem pouco tempo foi considerado um sintoma de pobreza, doença e, por conseguinte, infâmia, é agora um sinal de riqueza, vigor e distinção. O ponto é que os nativos desses «países de destino», à semelhança do que acontece com um animal assustado, fogem de tais lugares-lixo como a cruz, digamos, foge do diabo. É curioso porque há aqui um evidente paralelismo entre os fluxos migratórios e a transladação de lixo: em ambos os casos deve ser encontrado um sítio – noutro lugar – para tudo aquilo que o não tem – neste lugar. Um pouco à maneira dos campos de concentração nazis, que, de um modo puramente biopolítico, constituíam um «não lugar» jurídico, na precisa medida em que configuravam uma «lacuna da lei» prevista pela própria lei, também o «não-lugar» do lixo é uma espécie de vazio, ou estado espectral de sítio, tornado norma. Como em muitas outras áreas das nossas sociedades contemporâneas dominadas pelo princípio fetichista da mercadoria, o lixo de excelência, o lixo, enfim, com futuro, é adorado pelo facto mesmo da sua extrema raridade. Mas atenhamo-nos agora ao princípio da reciclabilidade do lixo e ao modo como ele nos pode instruir quanto perguntamos pela nossa condição política contemporânea. Se também o homem actual é cada vez mais concebido e desenhado em função de uma possibilidade de reciclagem permanente, é apenas porque também ele está desde o início programado segundo as mesmíssimas leis que governam o tratamento do lixo. Na verdade, é este estar originariamente concebido e disposto para a reciclagem que melhor caracteriza tanto a objectividade como a subjectividade contemporâneas. E este fenómeno tem que se lhe diga. É, por isso, num sentido muito concreto que se pode afirmar que o homem contemporâneo é um homem-lixo. Na verdade, para que o princípio da reciclabilidade se aplique aprioristicamente ao homem exige-se que ele seja desenhado de modo a dever poder perder todas as suas qualidades, pois o que é a transformação em lixo senão a perda acelerada de todas as qualidades rígidas de um dado material? E quem se atreverá hoje a pôr em causa que a reciclabilidade e a adaptabilidade permanentes exigidas ao homem hodierno são as mais eficazes garantias económicas de uma sua completa desqualificação política? Na verdade, que a sua subjectividade se torne cada vez mais instável e precária, que ela se veja cada vez mais moldada pelos atributos da ductilidade, da elasticidade, da flexibilidade e da modularidade, significa apenas que, tal como todo o lixo genuinamente reciclável, isto é, completamente depurado de qualidades visíveis, lixo-limpo e, por isso, lixo-luxuoso, também o homem contemporâneo se tornou num objecto de uma permanente re-engineering, crescentemente tiranizado pelo que os ideólogos da administração total chamam long-life education. O homem contemporâneo é um homem-lixado. |
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