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A mania da avaliação
António Bento · quarta, 8 de janeiro de 2014 · @@y8Xxv «No estado presente da História, qualquer escrita política só pode confirmar um universo policial.» Roland Barthes, O Grau Zero da Escrita |
21951 visitas A mania contemporânea da «avaliação» está cativa de uma crença supersticiosa no valor estatístico da «comparação». Sim, dizemos bem: com o princípio administrativo de uma «avaliação total» estamos perante o que os psiquiatras classificam como um «síndrome maníaco», no qual uma excitação crescente, acelerando as representações mentais, é acompanhada por um excesso de actividade e de intranquilidade que tornam a atenção voluntária e o discernimento do juízo, senão impossíveis, raros. De modo obsessivo, e sob a constrição imperiosa de mais iniciativa e de mais activismo, no «dispositivo» da «avaliação» comparam-se, quantificam-se e qualificam-se «competências» em função de «performances», que são «posições» dispostas em «escalas». Contudo, os “avaliólogos” de profissão não avaliam, in limine, rigorosamente nada, antes se limitam a presumir que podem decidir da interpretação da «avaliação» dispensando o julgamento e evacuando do âmbito das suas operações aquela ponderação própria da faculdade de julgar que se manifesta na deliberação. Para dar vazão ao ímpeto frenético de activismo comparativo cego, o «dispositivo avaliativo» contemporâneo aumenta, de uma forma tão extraordinária quanto desnecessária, o âmbito da burocracia, que se torna tentacular, capilar… kafkiana. Com «despachos», «regulamentos», «directivas», «protocolos», «indicadores», «patentes» e «certificados», que anulam a matéria propriamente dita da «avaliação» em benefício de uma formalidade processual autómata e irreflectida, o ideologema contemporâneo da «avaliação» transforma as relações de poder no mundo do trabalho em funções operacionalizáveis. Muito haveria que dizer a respeito desta característica de «operacionalismo» própria da linguagem da administração total que define as sociedades contemporâneas. De referir apenas que nas sociedades tecnológicas de hoje a administração e a dominação deixaram de ser funções separadas e independentes. Julgamos sabe-lo. E, contudo, o que sabemos a este respeito tanto o sabemos por Friedrich Hayek quanto por Herbert Marcuse, dois autores que facilmente situaríamos em campos políticos aparentemente opostos. Com efeito, ambos coincidem no diagnóstico segundo o qual o instrumento, por excelência, do controlo administrativo contemporâneo é a linguagem. Não, porém, uma linguagem qualquer, mas uma linguagem altamente unificada e funcionalizada, precisamente aquela a que Marcuse chamou «linguagem do pensamento unidimensional». Mas, o que caracteriza o «estilo» dessa linguagem, cuja trama, se encontra, sem dúvida, no próprio âmago do «dispositivo» da «avaliação»? «Esta linguagem transmite-se através de um estilo que é uma verdadeira criação linguística; uma sintaxe em que a estrutura da frase surge abreviada e condensada de tal maneira que não resta qualquer tensão, qualquer “espaço” entre as suas partes. Esta forma linguística opõe-se ao trabalho do sentido. A característica do operacionalismo – tornar o conceito sinónimo do conjunto de operações correspondente – reside na tendência linguística a considerar os nomes das coisas como indicando, ao mesmo tempo, o seu modo de funcionamento e os nomes das propriedades e processos enquanto símbolos do mecanismo utilizado para os descobrir ou para os produzir. Trata-se do raciocínio tecnológico que tende a identificar as coisas e as suas funções. […] Estamos perante um estilo que se caracteriza por um teor concreto maciço. A “coisa identificada com a sua função” é mais real do que a coisa que se distingue da sua função, e a expressão linguística desta identificação (no nome funcional, e nas múltiplas formas de contracção sintáctica) cria um vocabulário e uma sintaxe básica que barram o caminho à diferenciação, à análise, à distinção. O teor imediato e o estilo directo desta linguagem impedem o pensamento intelectual e, por isso, impedem também o pensamento. Porque o conceito não identifica a coisa e a sua função. Uma tal identificação pode ser inteiramente legítima e talvez até mesmo corresponder ao único sentido efectivo do conceito operacional e tecnológico – mas as definições operacionais e tecnológicas consistem em modos de usos específicos dos conceitos em vista de propósitos específicos. Além disso, dissolvem os conceitos em operações e excluem as dimensões do conceito que se opõem a essa dissolução. Antes do seu uso operacional, o conceito nega a identificação da coisa com a sua função; distingue o que a coisa é das funções contingentes da coisa na realidade estabelecida» (Marcuse: O Homem Unidimensional, 123-131).
A «linguagem» da «avaliação» é, pois, uma «linguagem» que não se presta ao «discurso». Procedendo por meio de sinónimos e de tautologias, ela exerce o seu controlo sobre o pensamento impedindo a elaboração do sentido e tornando-se imune ao princípio do contraditório. É, em suma, uma linguagem administrativa fechada, feita de enunciações que se auto-validam, que não demonstra nem explica, limitando-se a comunicar e a decretar a decisão. Nela, as palavras são usadas como meros “marcadores” ou “etiquetas” e o seu valor cognitivo, reduzido a um mínimo, serve apenas como fórmula que reconhece um facto inquestionável. Além disso, uma tal linguagem é feita de proposições auto-validadas que funcionam como outras tantas fórmulas mágico-rituais, de cunho hipnótico, as quais, à força de tanto serem marteladas nas mentes dos «avaliados», os encurralam no círculo das condições prescritas pelo «plano de avaliação» dos «avaliadores». Como observa Herbert Marcuse: «O facto de determinado nome aparecer quase sempre ligado aos mesmos adjectivos e atributos “explicativos” transforma a frase numa fórmula hipnótica que, interminavelmente repetida, fixa o sentido no espírito do receptor. Este é levado a não pensar em explicações alternativas (e possivelmente verdadeiras) do nome. As construções desta linguagem têm em comum uma compressão e uma sobreposição sintáctica que interrompem o desenvolvimento do sentido através da criação de imagens fixas que se impõem com uma espécie de realidade esmagadora e petrificada. As proposições assumem a forma de ordens sugestivas – são mais evocativas do que demonstrativas. A predicação torna-se prescrição; a totalidade da comunicação adquire um teor hipnótico. Ao mesmo tempo tinge-se de uma impressão forjada de familiaridade – efeito de uma repetição constante. […] Esta linguagem exerce o seu controlo através da redução das formas linguísticas e dos símbolos da reflexão, da abstracção, da elaboração, da contradição. Mas não se trata de um discurso de tipo terrorista. O traço novo da linguagem mágico-ritual é antes que as pessoas não acreditam nela, ou não lhe dão importância, e, contudo, agem de acordo com ela. A pessoa não “acredita” na verdade de um conceito operacional, mas este justifica-se na acção: consegue que o trabalho seja feito, que os produtos se comprem e se vendam, que cada pessoa se recuse a ouvir as outras…» (Marcuse: O Homem Unidimensional, 127 e 141).
Na verdade, a ânsia de «planificação» expressa no «dispositivo» da «avaliação» possui um aspecto particularmente perigoso se pensarmos que não é difícil privar a grande maioria das pessoas, e os «avaliados» em primeiro lugar, de um pensamento independente e autónomo acerca do alcance e dos efeitos da «avaliação». Dir-se-ia que a forma mais eficaz de levar toda a gente a servir o sistema único das finalidades que a «planificação da avaliação» tem em vista, é fazer com que toda a gente acredite nessas finalidades. Assim, para que o «sistema de avaliação» possa funcionar sem falhas e para que a «autoridade planificadora» prevaleça, os «avaliados» deverão estar de acordo com os «avaliadores» e pensar exactamente como eles. Os «avaliados» deverão, em suma, reconhecer os fins da «avaliação» como os seus próprios fins. Todavia, quando tal não sucede, seja qual for a razão que para isso contribua, a melhor técnica, do ponto de vista do «planificador da avaliação», continua a ser a de alterar o significado das palavras de modo a com isso impedir uma discussão racional sobre a substância da «avaliação». Como observa Friedrich Hayek: «Esta alteração do significado das palavras não é um acontecimento isolado mas sim um processo contínuo, uma técnica usada consciente ou inconscientemente para dirigir as pessoas. Gradualmente, à medida que este processo prossegue, toda a linguagem vai sendo despojada, as palavras tornam-se receptáculos ocos destituídos de um significado preciso, podendo designar tanto uma coisa como o seu contrário, e são usadas apenas pelas associações emocionais que ainda suscitam» (Hayek: O caminho para a servidão, 195).
Por aqui se vê que os dados carreados pela «avaliação» não devem ser isolados das outras fontes de informação. Na verdade, se todas as fontes de informação estivessem sujeitas apenas ao controlo executivo do «dispositivo» da «avaliação», a «avaliação» entraria certamente numa espécie de colapso ou curto-circuito. Mas voltemos à «mania» da «avaliação» ou à «avaliação» vivida e experimentada com «devoção» e «furor» burocráticos. Há pouco tempo, o filósofo José Gil teve a lucidez de chamar a este «síndrome maníaco» da «avaliação» um «processo de domesticação dos professores», do qual resulta um tipo-ideal de «homem avaliado» que, como viu Michel Foucault, começou por se formar e germinar no que a tradição alemã da razão de Estado chamou as Polizeiwissenschaften, ciências da administração ou ciências da polícia, feitas primariamente de censos e de estatísticas sobre «populações», isto é, sobre grupos de indivíduos vivos definidos como objectos estatísticos da «polícia» ou da «aritmética política». É precisamente deste homem vivo, activo e produtivo que os «relatórios de avaliação» de hoje se ocupam e é também a ele que as «ciências da polícia» vigiam e punem. O «dispositivo avaliativo», que na terminologia de Michel Foucault pode ser descrito como um mecanismo de extracção de mais-valias biopolíticas, expressa, no fundo, uma pura tecnologia policial disfarçada de ou apresentada como simples «racionalidade política». Face a uma luta e a uma competição naturais, os «planificadores da avaliação» consideram que nenhuma actividade, nomeadamente a «actividade de avaliação», pode ser espontânea, liberta de orientação, ou isenta de determinações prévias. A razão é simples: esse género de actividade pode dar resultados que não estão previstos e para os quais o «plano de avaliação» não tem soluções; e, sobretudo, pode dar origem a coisas novas que o «planificador da avaliação» não foi capaz de prever. De repente, é como se alguém murmurasse: “avaliai o avaliador a ser avaliado”! Na verdade, se a internalização do «princípio da auto-avaliação» é intensamente política é porque ela divide o «indivíduo avaliado» contra si mesmo, ao introjectar nele uma auto-desconfiança contranatural. A «avaliação» dá, por isso, primazia à «identidade» (forjada, em primeira instância, nos «relatórios de auto-avaliação»). Aliás, o «dispositivo» da «avaliação» é, antes de mais, um método estatístico de «formação de identidades discretas», ou, usando os termos de Michel Foucault, a «avaliação» é um «conjunto de práticas capazes de responder com efectividade a uma dada urgência». Com efeito, através da fixação de uma identidade policial artificial, a «avaliação» previne e reprime a própria possibilidade espontânea e natural de luta e de concorrência. José Gil, com bom faro, chama-lhe «vacina identitária». Fórmula profícua, esta, já que o seu princípio, sendo biopolítico, não é independente do que em tempos não muito distantes se designava por «política da raça». Mas a «avaliação» é, finalmente, e fundamentalmente, uma subjectivação da escravatura. Noutros tempos houve quem lhe chamasse «amor à servidão». Naturalmente, a força dos seguidores estúpidos das leis e da «planificação» tende a aumentar, pois no «homem avaliado» o «pânico» substitui o simples «medo»… Profundamente entretecida com uma tal força, impera também a desactivação profunda de qualquer forma de resistência, levada a cabo precisamente pelo «dispositivo» biopolítico da «avaliação». De acordo com a imunização do protesto e da recusa que a caracteriza, de acordo com o conformismo que ela instala no «homem avaliado», facilmente esquecemos que a «avaliação» é apenas uma «normalização» administrativa que acarreta muitas vezes uma significativa degradação da investigação e do ensino. A sua lógica punitiva e a sua urdidura penal, que em parte resultam da sua ânsia planificadora, cegam-na face à incerteza da descoberta que gera genuíno conhecimento e verdadeira riqueza. Pode, sem dúvida, dizer-se, com propriedade, que a lógica da «avaliação» é «dogmática», sendo, por isso, necessário que ela seja um tanto ou quanto estúpida. A esta altura, porventura consternado e estupefacto, o leitor perguntar-se-á: “mas… como é possível? Será o autor destas linhas contra toda e qualquer forma de «avaliação»?!” Não. Não é. É apenas contra aquelas «avaliações» que pouco ou nada de substantivo «avaliam». |
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