“O desafio que se coloca às sociedades é tremendo”
A Assistência Médica Internacional celebra 25 anos de vida. Uma das mais conhecidas organizações humanitárias do nosso País, foi fundada e é presidida por Fernando Nobre. O médico fala agora ao Urbi sobre as suas experiências, do futuro da organização e dos seus projectos pessoais.
> Eduardo AlvesUrbi@Orbi – Diz no seu blogue que os dois grandes males deste mundo são a intolerância e a indiferença. Palavras muitos pesadas que servem para acordar a sociedade?
Fernando Nobre – São duas doenças sociais tremendas. Ultimamente, a própria sociedade parece só comunicar, ou pelo menos ouvir, através de palavras curtas, mas incisivas. Mas tenho comunicado sobretudo através desse tipo de palavras, daí o meu blogue ser “Contra a Indiferença”, o prémio da AMI “Jornalismo Contra a Indiferença”, os meus livros e outras acções.
A indiferença leva ao egoísmo, leva a que não olhemos para os outros como nossos semelhantes e aceitemos comportamentos infames e crises como aquela que aconteceu recentemente e que abalou o mundo provocando, num ápice, mais cerca de 200 milhões de pobres, segundo dados do Banco Mundial.
Já a intolerância provoca os conflitos, as guerras, a rejeição do outro. Estas são duas “doenças” altamente mortíferas que estão na base de todos os conflitos violentos, pelos quais tenho passado nos últimos 30 anos e que permitem que a exclusão social alastre, que o desemprego alastre porque começa-se a ver o outro, não como nosso semelhante, mas como algo invisível, e isso é tremendo.
Urbi@Orbi –Quer com isso dizer também que quanto mais ricas são algumas pessoas ou grupos, menos predisposição têm de ajudar os mais pobres?
Fernando Nobre – Felizmente as ajudas, ainda assim, vão surgindo, mas não estão à altura das necessidades. O desafio das sociedades é tremendo e se não existir uma coesão muito forte ao nível dos Estados nas suas diversas componentes é complicado. O Estado com as suas estruturas oficiais tanto ao nível do governo com a sua parte executiva e legislativa, judicial, as autarquias, as juntas de freguesias, organismos que constituem o Estado e depois as forças do mercado, as empresas, a cidadania, a sociedade civil organizada, como é o caso da AMI; se nós todos não nos empenharmos e não mostrarmos uma coesão determinada para respondermos aos desafios que se nos colocam hoje em dia, não vai ser possível responder, com eficácia, nomeadamente à questão da exclusão social no nosso País. E por isso implica que todos nos empenhemos e nos conjuguemos em esforços.
Ainda há bem pouco tempo estive no Porto a inaugurar um espaço da Infoexclusão, que conta com o apoio de empresas como a Fnac, a Siemens, a Galileu, a Microsoft. Tudo isto vem no sentido da necessidade de criar redes solidárias que integrem todas as componentes de um Estado. Se assim o não fizermos, não vai ser possível ajudar os outros.
Urbi@Orbi –Falta então uma aposta nessas redes de apoio?
Fernando Nobre – Isso é uma responsabilidade de todos nós. Eu assumo a minha cidadania e sou alguém que se bate por uma cidadania activa, exigente, assumida, porque o que nos rodeia é da responsabilidade de todos.
Não podemos sacudir a água do capote dizendo apenas que as responsabilidades são dos governos. Nós cidadãos, nós empresários, temos a nossa parte das responsabilidades, e por isso temos também de agir. Nas minhas humildes possibilidades e na humilde casa que fundei em Portugal há 25 anos, a Assistência Médica Internacional (AMI), temos tentado dar a nossa resposta. Mas esta é uma atitude que se tem de juntar a milhares de outras respostas, porque de contrário, nós estaremos a contribuir, por omissão, para a construção de uma sociedade onde não vai ser fácil viver. Se nada for feito acabaremos por construir uma sociedade de guetos, tanto para ricos nos seus condomínios, como para os pobres, nos seus bairros degradados.
Urbi@Orbi –É essa a sociedade de que fala no seu projecto, “Imagens Contra a Indiferença”?
Fernando Nobre – Os meus livros, quer de fotos, quer até os dirigidos a crianças, tudo o pretendem demonstrar é que, efectivamente, há problemas reais aos quais não nos podemos escamotear, não podemos fugir.
Faço parte de uma elite, por nascimento, por cultura, por formação académica, mas porque tenho a perfeita consciência de fazer parte dessa elite, entendo que tenho deveres redobrados, tenho de tentar dar a minha melhor resposta. Há algumas semanas fiz uma conferência no Congresso Nacional dos Economistas, no Funchal, onde chamei todos os presentes às responsabilidades que têm enquanto empresários, presidentes de empresas, empreendedores, têm responsabilidades acrescidas porque fazem também parte da elite. Ser de uma elite é ter deveres, não só ter direitos, sobretudo deveres. Ou nós assumimos isso de uma vez por todas, ou então, o desvario está instalado.
Esta crise financeira foi o resultado de um desvario tremendo, em que uma elite financeira global entendeu, a partir de uma certa altura, que só tinha direitos, direitos e cada vez mais direitos. Fechou-se numa indiferença assassina e isso provocou num instante, apenas e só, mais 200 milhões de pobres.
Urbi@Orbi –Vivemos então hoje também numa crise “social”?
Fernando Nobre – Uma crise que se vive quer em Portugal, quer no mundo inteiro. Temos índices de desemprego elevadíssimos e a própria OCDE traça, para Portugal, um quadro de divergência de parâmetros sociais, em relação à União Europeia. Vamos crescer, lentamente, mas vamos crescer menos que os outros, em média geral. Isto quer dizer que nós vamos tornando-nos mais pobres, comparativamente à média da União Europeia e isso é algo que a mim, enquanto português, um português que nasceu numa província ultramarina que era Angola e porque decidi voltar ao meu Pais após ter vivido 20 anos em Bruxelas onde era docente universitário, cirurgião e tinha a minha vida feita, deixa-me triste e preocupado.
Mas é também neste cenário que vemos que todos nós temos deveres. Sobretudo o dever de promover o nosso Pais e deixar de lado a ideia de que temos um atavismo lusitano que nos condena a ser menos que os outros. É preciso motivação, mobilização, responsabilidade, exigência, transparência na condução da Res Publica e dos negócios.
As notícias a que temos assistido nos últimos tempos não nos animam nada. O nosso País está a precisar de ter ânimo para enfrentar a crise na qual já está instalado, mas os outros também, e por isso o trabalho terá de ser global.
Urbi@Orbi –Nasceu em Angola, como disse, passou também pelo Congo, esteve em Bruxelas e depois para Portugal. Como é que foi essa aventura de vida?
Fernando Nobre – Todos somos o resultado de uma caminhada. No início da minha vida acompanhei os meus pais e hoje estou em Portugal porque assim decidi, ninguém me obrigou, apenas quis lançar este projecto no meu País. É aqui que dou o meu contributo quer na AMI; quer na docência e na ligação às restantes actividades.
Foi uma aventura de vida com um lado positivo e outro não tão bom, como todas. Esta é a resposta que consigo dar às solicitações que me fazem e à gestão de uma agenda, muito complicada.
Urbi@Orbi –Um quarto de século de AMI e o futuro, como espera que seja?
Fernando Nobre – Espero que a AMI condiga, nos próximos 25 anos, ver as suas capacidades aumentadas para poder dar resposta aos desafios tremendos que antevejo, nomeadamente à questão das alterações climáticas, nomeadamente com as implicações na alimentação do mundo, no conflitos entre Estados e nas deslocações maciças de população que isso vai implicar. Espero que a AMI contribua, como tem feito até hoje.
Perfil de Fernando Nobre
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