Histórias políticas de um outro Portugal
O primeiro oficial negro do Exército Português esteve na UBI. Na primeira pessoa, Manuel dos Santos Lima veio explicar o seu ponto de vista crítico e acutilante sobre o processo de descolonização e o actual estado do continente africano.
> Eduardo AlvesA cidadania portuguesa era algo raro na documentação de um negro angolano durante a secular ocupação que Portugal realizou naqueles territórios. Manuel dos Santos Lima encontrava-se entre um restrito número de africanos que tinha acesso a esse “passaporte”. Um pedaço de papel que lhe permita frequentar uma escola “de meninos brancos e onde tinha de escrever num banco que levava de casa porque não havia mesa para mim”. O gosto pelos livros levou-o a terminar o primeiro ciclo de estudos. Num tempo em que “o mais certo era ter um emprego por detrás de um balcão ou ao volante de um camião”, a professora portuguesa convenceu as autoridades do regime salazarista a permitirem que Santos Lima fizesse exame de acesso aos estudos seguintes. Uma experiência que ainda hoje relata com alguma mágoa e que foi mais um dos episódios que o levou a tornar-se membros do Movimento Para a Libertação de Angola (MPLA).
Depois de fazer uma viagem de 800 quilómetros de comboio “dei por mim dentro de um edifício onde estavam mais de 500 crianças brancas e apenas dois negros”. No final do exame, o colega daquele que se viria a tornar o primeiro oficial negro do Exército Português, quando o professor branco lhe perguntou o que é que ele gostaria de ser quando fosse adulto, respondeu, “para espanto de todos, que queria ser cozinheiro”. Gostava de ter comida “porque era esse o bem que mais ambicionava”.
O Regime Salazarista acabou por permitir a este negro com nacionalidade lusa “vir estudar para Lisboa”. Sem com bons resultados e desde os 12 anos em Lisboa, Lopes da Silva acaba por ingressar na Faculdade de Direito onde não acaba o curso “porque, como todos os jovens portugueses, tive também de cumprir o serviço militar”. Momento de grande viragem e decisões na sua vida. Isto porque, “quando ingressei no exército e como tinha estudos universitários, passei a ser o primeiro oficial das forças armadas portuguesas”. Uma posição que o iria colocar “quando teve início a Guerra Colonial”, em confronto com o seu próprio povo.
Numa das missões para que foi destacado, tomou um avião rumo a Goa. Contudo, nunca haveria de pisar solo indiano, uma vez que “em Damasco, na Síria, aproveitei uma escala que o aparelho tinha de fazer, para me tornar um exilado”. Nessa altura “tinha apenas comigo, uma escova de dentes, uma pistola e 25 cartuchos, foi tudo o que herdei do Salazarismo”. Junta-se então ao recém-criado MPLA e acaba por se tornar um dos oficiais do movimento.
Militar, mas também académico, Manuel dos Santos Lima revela-se agora testemunha fundamental de todo o processo que se seguiu à Revolução dos Cravos. Na passada semana, a conversa aberta que manteve com os alunos da licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais serviu, acima de tudo, “para lembrar histórias importantes na construção de um processo que ainda hoje não está terminado”. A demanda “por um continente africano livre e democrático, ainda está muito longe”, garante o até há bem pouco reitor da Universidade Lusíada de Angola. Desiludido com orientação dada pelos responsáveis políticos e militares, aos países africanos que conquistaram a independência, incluindo Angola, acaba por dedicar-se às letras e aos estudos. Autor de inúmeros livros de referência sobre Angola é hoje um dos mais respeitados intelectuais daquele país.
Contudo, mantêm a sua visão crítica perante o rumo tomado “nas políticas e pelos políticos de África, no período do pós-colonialismo”. Sempre defendeu que a democracia apenas se alcança “através da educação dos povos” e isso é um trabalho e uma luta “que está a passar ao lado”. Mas aquilo que ainda hoje verifica “é a continuação de poderes semelhantes aos regimes totalitários, mas trocaram-se os brancos pelos negros”. Santos Lima confessa que a sua geração “foi completamente perdida”, e apenas “daqui a alguns anos se poderá começar a pensar num continente africano totalmente livre, sem ser o campeão de golpes de Estado e o local de exploração das grandes potenciais”, sublinha.
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