Há uma coisa que a recente crise financeira nos ensinou: não existe aquilo a que se chama “realidade virtual”. As coisas ou são virtuais ou são reais. A economia não pode funcionar com base em dinheiro imaginário. Enfim, trata-se de algo que a história da Cinderela já nos tinha explicado muito bem: as abóboras, que não são mesmo carruagens, acabam por revelar, mais tarde ou mais cedo, a sua natureza vegetal.
Na presente contracção económica, sente-se que antes existíamos num vago universo de tracejados – só agora as linhas do desenho em que vivemos começam a ficar marcadas. O mundo volta devagar à sobriedade da sua verdade. E este autêntico “regresso ao real” que está a acontecer também deve pautar a vida das Universidades: isto porque, também no sistema universitário, existia e existe muita virtualidade.
Voltemos, pois, à substância – ao osso do conhecimento. Abandonemos aquelas sonoras licenciaturas e mestrados que, no fundo, não consistem noutra coisa que não seja o vago eco fascinante das suas feiticeiras designações. Qual é o papel das letras numa estrutura universitária reduzida ao esqueleto das suas essências? Pensamos que, sem dúvida, esse papel se mantém muito relevante.
O mundo dos homens vive embebido nas línguas faladas pelas várias culturas. Conhecer essas línguas, que são como que as legendas do filme de tudo o que nos vai acontecendo, continua a ser fundamental. A estereofonia cultural do mundo presente implica o domínio dos instrumentos linguísticos que conformam esse poliedro de culturas. Saber usar a fundo uma língua materna e várias línguas estrangeiras permite viver de um modo muito mais consciente e integral.
É verdade que eu vivo numa casa concebida por arquitectos e engenheiros, mas esses arquitectos, esses engenheiros fazem os seus relatórios profissionais numa língua que eu manipulo melhor do que eles. Existe um médico que me trata – mas que me prescreve a medicação num idioma de que eu sei mais coisas do que ele sabe. E se, por hipótese absurda, houver um Ministro ou Secretário de Estado ou Director-Geral que acha as letras desnecessárias, não é por isso que deixa de fazer falta um assessor que elabore ou corrija os comunicados do seu gabinete.
Mas, se as letras sempre têm o seu lugar, também é necessário que elas se transformem no contexto presente. Os actuais modelos de ensino e de investigação, existentes no âmbito das filologia, estão como que adormecidos na monotonia da formação de professores: tendo em conta que não são necessários novos docentes nos vários níveis de ensino, as Faculdades de Letras encheram-se de fantasmas.
Há formas de reagir a esta escassez de alunos que não conduzem a nada. Um dos caminhos que não nos leva a lugar nenhum é vendermos a preço de saldo os nossos títulos académicos. Outro: criarmos “novas” licenciaturas que apenas embrulham em designações mais sonoras, mais atraentes e hipnóticas, aquilo que sempre ensinámos. Ainda uma terceira solução que só o é em aparência: fazer da recepção aos nossos discentes uma espécie de processo de adopção em que os tratamos com o mimo escandaloso dos filhos únicos.
Parece-me que as saídas reais são duas. A primeira consiste em transformar as cadeiras leccionadas pelas letras de modo a ajustá-las aos interesses de outras áreas de formação. Tal como acontece no sistema universitário americano – e isto foi algo que recentemente explicou Onésimo Teotónio de Almeida, conhecido professor da Brown University (cf. Onésimo Teotónio de Almeida, “O futuro das humanidades na universidade portuguesa”, Boletim da Academia Internacional da Cultura Portuguesa, 2006, nº 33, pp. 145-149) –, deveriam as nossas licenciaturas em medicina, em engenharia, em economia, entre muitos outros âmbitos, possuírem nos seus percursos de formação cadeiras de humanidades.
E, de facto, os nossos médicos, os nossos engenheiros seriam muito mais competentes se soubessem ler e escrever melhor – se soubessem pensar melhor…– do que efectivamente sabem. Vou dar um exemplo muito pessoal: lecciono a cadeira de “Literatura Portuguesa Romântica e Realista”. Contudo, se a tivesse de transformar numa cadeira de humanidades gerais que pudesse integrar a formação de um curso de medicina, não teria dificuldade em fazê-lo – e posso garantir-lhes que pelo menos um aluno de medicina, desses que o é por sensata pressão da família, deixaria de o ser para se licenciar em letras.
Contudo, as letras não estão destinadas apenas a este papel acessório noutras formações. Existe a possibilidade real de criar novas licenciaturas nesta área, ajustadas às necessidades sociais actuais. Contudo, tal deveria ser feito por todas as Universidades em conjunto, após uma reflexão partilhada por todas elas, definindo-se um padrão de algumas licenciaturas comuns e de uma posterior rede de mestrados mais especializados. A natureza um pouco “feudal” do sistema universitário dificulta esta reflexão global nacional – mas só isto é que funcionava realmente.
A pressão financeira a que as Universidades estão submetidas pode convidar a extinguir estudos de letras, de matemática ou de filosofia. O resultado seria bem estranho: uma Universidade que acabasse com as letras seria como uma biblioteca que abdicasse de ter dicionários nas suas prateleiras; uma Universidade que acabasse com a matemática seria como uma empresa que prescindisse de máquinas de calcular ou de qualquer outro instrumento de cálculo – e uma Universidade sem estudos de filosofia seria como um belo corpo, muito harmonioso em termos de gestão orçamental, mas sem cérebro na sua caixa craniana.
Partilho estas reflexões com os colegas sem nenhum tipo de pretensão: é importante dizer isto, numa época eleitoralizante. Não tenho uma visão pombalina do trabalho universitário, mas sim beneditina – e algo franciscana. Deixo pois aqui estas breves sugestões para que outros corrijam, continuem ou desenvolvam aquilo que eu apenas me sinto capaz de, deste modo, principiar.
Multimédia