Voltar à Página da edicao n. 455 de 2008-10-14
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> <strong>António Bento</strong><br />

A intrigante figura do intriguista

> António Bento

Quando o palácio ou a corte estão confusos, como no título do drama de Lope de Vega, o encanto do heroísmo está no facto de que tudo se pode confundir com tudo, podendo a inocência ser maltratada e a maldade recompensada, a narrativa não tendo que seguir a ordem edificante das histórias, até que o mundo possa de novo entrar nos eixos. O artista palaciano desta confusão, o organizador do seu enredo prático, o seu coreógrafo político, era o cortesão intriguista, personagem dramática da «civilização de salão» barroca.

As infames maquinações do intriguista, que incluem o engano, os estratagemas, o perjúrio e a traição, despertavam no público dos dramas políticos da época um interesse tanto mais vivo quanto o espectador não via neles apenas um conhecimento prático da actividade política, mas um genuíno saber antropológico, e mesmo fisiológico, essencial à vida civilizada da corte. Não é pois um acaso se a corte é comparada, nos textos da época, a um sólido edifício de mármore, e tal como o mármore, também os cortesãos devem ser fortes, duros, mas muito polidos.

Um homem que, como o intriguista, conhece os usos da corte, «é senhor» – observa La Bruyère – «do seu gesto, dos seus olhos, do seu rosto; é profundo, impenetrável; dissimula os seus maus ofícios, sorri aos inimigos, refreia o mau humor, disfarça as paixões, desmente o seu coração, age contra os seus sentimentos». Tendo tantos desígnios e sentimentos a ocultar, o cortesão intriguista – anota, por seu turno, Jean-Jacques Rousseau – «sabe compor o seu exterior, governar o seu olhar, o seu ar, a sua atitude e maneiras, tornando-se mestre das aparências; ele sabe como ninguém tirar as suas vantagens e cobrir de um verniz de moderação as sombrias paixões por que é corroído».

Daí que a arte palaciana da observação, imersa num mundo de intrigas ao qual cada um devia responder adequadamente, implicasse o cálculo a longo prazo, o autodomínio, a exacta regulação dos afectos, mas sobretudo o conhecimento dos homens e dos terrenos que se pisam, pois por todo o lado há adivinhos do coração e linces da intenção: «a vida do homem» – nota Baltasar Gracián no seu Oráculo Manual e Arte de Prudência – «é milícia contra a malícia do homem».

Nessa época, a figura do intriguista superior, tal como ela é dada a ver nos dramas políticos palacianos e nos tratados de moral política, conta não tanto com a força da razão, mas com o efectivo poder da animalidade e dos afectos na vida comum. Conta sobretudo com o poder dos afectos do amor e do medo – com a sua ausência de limites. Por conseguinte, ele, o intriguista, pretende ensinar o homem da corte a dominar os afectos, não tanto com a razão, mas com a mobilização de outros afectos, pois, como Espinosa o ensinou, sabe que «a natureza humana é só uma» e que «é comum a todos». Por isso, não comete a estultícia de restringir só à plebe vícios que ele sabe que são comuns a todos os mortais: «o rei é um homem penteado com uma coroa», diz uma fórmula cunhada nessa época pelo ministro britânico da guerra, Henry St. John Bolingbroke, na qual se dá a ver a revolucionária redução moral do príncipe a simples homem.

Daí que a figura do conselheiro ardiloso, com as suas manobras políticas e a sua simplicidade fingida, possa nessa época assumir traços cómicos que contrabalançam, na economia do drama, a seriedade presumida do seu ofício. E como conhecer as insinuações e saber usá-las é a área mais subtil do trato humano, «por vezes» – como nota Baltasar Gracián – «é melhor o conselho contido num gracejo, que o mais douto preceito».

Pode-se assim observar, nas polidas artimanhas do intriguista, no frenesi histriónico que comanda a sua actividade de conselheiro, a alternância, típica de um carácter sádico, entre a atitude cruel de uma criança que ri e a seriedade grave do adulto que se horroriza. Na primeira destas suas duas máscaras, o intriguista aparece inevitavelmente como o bobo da corte. Ele é o truão cujo principal traço de carácter é um incomensurável desprezo pela arrogância humana. Daí o seu cortante e provocatório sarcasmo, repleto de astúcia, com o qual ele pretende enganar os seus pares e assumir a direcção da intriga da peça.

Mas se lhe cabe ser o bobo da corte, é porque o Príncipe que ele serve é para ele como um rei de um baralho de cartas. Com efeito, para a personagem do intriguista barroco a cabeça de um Rei é como se fosse um balão: no palco e diante de todos, ele brinca com a sua coroa como uma criança brinca com um arco e pode-se dizer que não tem mais respeito pelos símbolos da soberana magistratura do que aquele que teria por um qualquer adereço de um manequim, pois só ele sabe o quanto o Príncipe é um fantoche.

Na metaforologia teatral dessa época, o cortesão intriguista chamou a si mesmo a imagem central do relógio do poder, dando-se a ver como o ponteiro dos segundos da própria história. Ele, que aconselha, pode muito bem ser uma engrenagem no relógio do poder, embora o Príncipe, que age, deva ser o seu ponteiro e o seu peso. Deste modo, não são apenas os actos do Príncipe, mas também as manobras do cortesão, a sua intriga, que manejam o ponteiro dos segundos, impondo o ritmo aos acontecimentos políticos que, com ele, se domesticam e estabilizam. E esse é o drama. Como os príncipes preferem de longe ser escutados a escutar, não é sem razão que façam sentir aos seus conselheiros que alimentam uma pequena suspeita sobre eles.

«Se Caim foi o primeiro cortesão, é porque a maldição divina o privou de qualquer pátria», diz-se, de modo muito sofisticado, num drama espanhol dessa época. O que isto quer dizer é que o intriguista é a alma danada do Príncipe (Ditador/Deus). A maldição fundadora com que Deus fulminou o assassino, ou a arrogância com que o Príncipe desconsiderou um dia o súbdito, abatem-se também muitas vezes sobre eles. Daí que uma inextirpável maldição pese também sobre o saber prático e angustiado do cortesão intriguista. Lúcida e sem ilusões, a sabedoria do intriguista é para ele uma enorme fonte de sofrimento e de penitência. Ao mesmo tempo, devido ao uso que ele dela pode fazer a qualquer momento, pode tornar-se perigosa para os outros. Seja como for, o intriguista é sempre maldito.

Assim, a figura do intriguista ora aparece, no protestantismo, como um cortesão hipócrita, demoníaco, sem honra, e incitador de crimes, ora como o cortesão eclesiástico e mundano no catolicismo, que procura o «sossego» mediante uma mistura de ethos católico com ataraxia antiga.

Em todo o caso, o intriguista, como homem do mundo, deve ser frio e desiludido, embora ardente na vontade de poder. A mistura de uma rigorosa disciplina interna com uma inescrupulosa actividade externa define o exercício das suas faculdades e a esfera das suas competências. Por um lado, o intriguista deve ser capaz de viver com o espírito (o fantasma) do Príncipe (Ditador/Deus); por outro lado, deve também ser capaz de reivindicar, ao mesmo tempo, inocência pelos crimes que aquele expia. De um modo ou outro, o intriguista é amaldiçoado pelo povo, tanto quanto ele amaldiçoa, por sua vez, o Príncipe.

Seja como for, o intriguista é sempre maldito.

É sempre dito maldito.


Data de publicação: 2008-10-14 17:20:42
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