O enredo é mais ou menos o seguinte: o partido que ocupa o Estado que agora vai cessar funções, com o termo da 2ª presidência de George W. Bush, pede aos actuais apoiantes e financiadores dos partidos republicano e democrata que entreguem dinheiro a este estado, i. e., ao partido que neste momento ocupa o Estado, para que este, por sua vez, o entregue a bancos, que não estando nas mãos do Estado, passarão a estar. Ao mesmo tempo que o actual estado declara a crise, decorrem – subtil coincidência… – eleições para a presidência do Estado.
Quer dizer, os partidos que agora se apresentam a eleições através dos seus dois candidatos, Barack Obama e John McCain, são chamados a assumir um encargo (uma dívida) que o actual estado lhes deixa. Do fundo público de 700 mil milhões de dólares, cabem ao actual estado, através da Secretaria do Tesouro, 250 mil milhões. Ao actual presidente, por ser presidente, cabem 100 mil milhões. Os outros 350 mil milhões (metade do montante) é o Congresso que os deve (ou não) entregar. Mas, numa primeira deliberação, o Congresso dividiu-se. Na Câmara dos Representantes, o plano financeiro de ajuda, ou o pacote proposto pelo actual estado, não passou. Por 228 contra 205 votos. Finalmente, numa segunda ronda, o plano passou.
Ora, os bancos que o actual estado quer beneficiar são bancos onde o partido do Estado que agora vai cessar funções passará a estar. Não são bancos do Estado, mas bancos que têm relações com o actual estado. Como quer que seja, dá-se aqui uma subversão política que torna obscura a desejável clareza da oposição público (estatal) / privado (social).
O que se passa é que o actual estado está a tomar partido por alguns bancos que se encontram falidos ou quase falidos, comprando as suas dívidas, que ele próprio declara difíceis ou impossíveis de cobrar. Foi, no entanto, o actual estado que declarou aberta uma crise e que propôs um fundo público para aplicar nas dívidas dos bancos privados. Com este gesto, o Estado norte-americano compra uma dívida que não lhe compete comprar. Compra-a, alegando o actual estado que isso é melhor para o Estado que há-de vir.
Nestas condições, quem pode garantir que a actual crise beneficie mais um candidato à presidência do Estado do que outro, antes um candidato do que outro?
Ao querer impor um preço para a compra das suas próprias dívidas como privado entre os privados, o actual estado funciona como o partido desses bancos falidos no Estado, na medida em que medeia o negócio destes, ou seja, de si próprio, com o Estado.
Que esta crise tenha vindo interromper o fluxo, até aqui, imaculado das eleições, significa que são os partidos que agora estão de fora do Estado que vão ter que subsidiar um estado que vai deixar de ser Estado e transformar-se num simples partido, i.e., num concorrente.
Neste contexto, saber quem vence as eleições quase é questão de somenos, comparada com a magna questão de saber quem é o Estado. A crise financeira aparenta, pois, ser um golpe de estado do actual e cessante Estado, cujas consequências apenas se tornarão visíveis depois das eleições. Que é como quem diz: quem vier a seguir que pague as dívidas do partido que nestes últimos anos ocupou o Estado e que agora aparece como prejudicado com umas inoportunas eleições. É uma autêntica perfídia, esta crise financeira. Mas ela é sobretudo uma crise do próprio Estado cujas consequências estão longe de serem inteiramente conhecidas.
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