Voltar à Página da edicao n. 451 de 2008-09-16
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> <strong>António Bento</strong><br />

A credibilidade do silêncio ou “Por Que Não Falas”?

> António Bento

Dos argumentos apresentados por Manuela Ferreira Leite e pela sua equipa de conselheiros para justificar a contenção verbal da líder do PSD, aquele que imediatamente se destaca e que, de maneira subliminar, aspira a comunicar com o próprio inconsciente do eleitorado, é o de que a parcimónia no uso da palavra, é não apenas a melhor, mas a única forma de recuperar a “credibilidade dos políticos”. Como se o simples elogio do silêncio nos pudesse garantir algum acontecimento… Mas, compreende-se: o silêncio é frequentemente o partido mais seguro daqueles que desconfiam de si próprios. Sendo verdade que prometemos segundo as nossas esperanças e que cumprimos segundo os nossos receios, é como se MFL dissesse: “Invisível e calada – é assim que eu quero que os portugueses me vejam, revendo-se eles em mim: na minha invisibilidade e no meu silêncio”. Talvez MFL acredite sinceramente que a ideia falsamente moral de uma política sem política, de uma “política da verdade”, é a única que está em condições de exigir sacrifícios (ainda mais e muitos mais) aos portugueses. Aliás, parte do sacrifício exigido aos eleitores está desde logo justificada pelo sacrifício pessoal feito pela própria assim que MFL aceitou o pesado encargo de assumir a função pública de líder do PSD, putativa candidata a Primeiro-Ministro.
A opção por esta forma de comunicação política com o eleitorado, consciente da psicologia e das susceptibilidades da “alma dos portugueses”, explica-se facilmente se recordarmos o conteúdo originário que invariavelmente estrutura a mensagem política de MFL, sempre que esta decide romper o “silêncio” que a si mesma impôs: com ela, os portugueses não serão iludidos nem enganados com falsas esperanças, devem antes contar com tempos de privação e de restrição, devem, por isso, refrear as suas ambições e limitar as suas aspirações, desejos, prazeres, etc. A própria garantia da integridade moral do sacrifício, tanto como o certificado da sua dignidade política, exigem auto-apagamento, discrição. Em suma, o sacrifício deve ser vivido, experimentado e sofrido em silêncio. Por conseguinte, se MFL, deliberadamente, prescinde de agir e de falar, não aparecendo ao público a quem, no entanto, ela se dirige, é porque considera que apenas a invisibilidade do seu próprio sacrifício pessoal garante que a líder da oposição e candidata à chefia do executivo, possa, por sua vez, exigir sacrifícios aos eleitores.
Daí as suas prolongadas retiradas para a penumbra do mundo privado, pontuadas, por vezes, pela rispidez e secura de um comunicado a que faltam, significativamente, imagens. Quanto mais invisível e privada, quanto mais privativa e ascética for a imagem física da líder, acredita-se, tanto mais o fantasma da sua ausência se tornará presente e se fará sentir, insinuando-se na “alma” do eleitorado. Para que possa verdadeiramente existir, o sacrifício deve ser vivido desaparecendo do ouvido e do olhar do público. Ele não deve mostrar-se nem fazer-se notar, deve apenas tornar-se invisível. Daí também a centralidade quase religiosa, e intensamente política por isso mesmo, do voluntário auto-apagamento da pessoa de MFL, o qual se quer exemplar: fazer calar, estando calada. Acredita-se que o estado ascético de invisibilidade e de mudez da líder traz consigo a aura e o suplemento de uma espiritualidade que se quer imaculada e eleitoralmente frutuosa. Que um tal apelo ao atávico background católico português e à mística salazarista possa surtir efeitos e ganhar votos numa esfera pública secularizada e numa esfera mediática profundamente hedonista é algo que está para confirmar ou infirmar.
Como quer que seja, uma coisa parece certa: justificar a restrição e, no limite, a própria supressão, do exercício político da palavra com o argumento de que só assim é possível restituir a “credibilidade aos políticos”, significa desde logo o reconhecimento de duas coisas: primeiro, a admissão, pelo não-dito, de que a política está umbilicalmente ligada à mentira; segundo, a assunção, pelo sobre-dito, de que uma “política da verdade” exige que se fale pouco e se faça muito. O carácter próprio de um político corajoso, espera-se, seria falar pouco e realizar grandes acções, tal como o carácter próprio de um político com bom senso seria falar pouco e dizer sempre coisas sensatas.
Ora, a falácia deste argumento (que é também o sintoma da sua extrema miséria), que radicalmente separa os actos das palavras que os descrevem, explica-se pelo facto de que só analiticamente se pode separar o discurso da acção. Mas no mundo dos assuntos humanos que é o mundo político, as palavras a as acções possuem a mesma dignidade e valor: apenas a pura violência é – e se quer – muda. O silêncio, como privação ontológica, como diminuição da faculdade e da liberdade da palavra, é, contudo, a maior das violências. Assim, todos os actos verdadeiramente políticos, na medida em que se distinguem da violência, são necessariamente realizados com palavras. O próprio gesto de proferir as palavras adequadas no momento certo, independentemente da informação ou comunicação que elas transmitem, constitui uma acção: a mais elevada forma de acção política. Essa a razão porque a própria definição aristotélica do homem como um «ser vivo político» (zoon politikon) permaneceu insuficiente até que uma segunda definição a veio completar, outorgando-lhe pleno sentido: o homem como «um ser vivo dotado de fala» (zoon logon ekhon).
Quem, como MFL, se recusa a aparecer naquela esfera pública que garante um mundo comum, não fazendo uso da sua capacidade de pensar e de falar com os cidadãos, desaparece para os outros. Não se dá a conhecer. É, portanto, como se não existisse. Através de uma concepção anti-política da política, abre-se assim um caminho perigoso que, subliminarmente, introduz nos cidadãos a desconfiança e o ódio para com a palavra. Recusando aparecer na esfera pública, que é o espaço de aparência onde todos podem ser vistos e ouvidos por todos e onde potencialmente todos podem dialogar com todos, MFL recusa também o que é comum a todos. Ao desaparecer da esfera pública, tornando-se invisível e silenciosa, MFL retira-se para a esfera privada e priva-se da percepção da realidade comum, o maior dos bens. Priva-se assim duplamente: priva-se de ser vista e ouvida pelos cidadãos, ao mesmo tempo que se priva de ver e de ouvir os cidadãos.
É certo que só devemos deixar de estar calados quando temos alguma coisa a dizer que valha mais do que o silêncio; que assim como há um tempo para calar há também um tempo para falar; que nunca saberá falar bem aquele que antes não tiver aprendido a calar-se. É também certo que o silêncio é politicamente necessário em algumas ocasiões; que é preciso saber governar a língua e captar os momentos convenientes para a reter ou para lhe dar uma liberdade moderada, seguindo sempre as regras que a prudência aconselha em cada caso. Finalmente, é ainda certo que há que distinguir entre os casos em que o dever de falar é rigorosamente obrigatório daqueles em que nos podemos calar sem que com isso cometamos uma injustiça ou dissimulemos uma mentira. Seja como for, há sempre maneiras de nos calarmos sem fecharmos o nosso coração; de sermos discretos sem sermos obscuros e taciturnos; de esconder algumas verdades sem as cobrir de mentiras.
Contudo, a própria ideia de uma generosidade ou de uma nobreza ínsita à política só se torna possível porque ela assenta no exercício responsável de uma promessa – que é sempre um compromisso com a palavra publicamente partilhada, e jamais a sua mera supressão ou denegação. Politicamente, um homem só se dirige a outro homem, quando, explicitamente, publicamente, lhe promete ser veraz. E fá-lo usando necessariamente as palavras. Por conseguinte, em nenhum caso, sob nenhum pretexto, mesmo pelo que podem parecer as melhores e as mais inspiradas razões do mundo, o homem político pode faltar com a palavra ao seu eleitor, que é também o seu semelhante num mundo comum. Não faltar com a palavra, nem faltar à palavra dada. Pois não é possível faltar à palavra dada sem primeiro dar a palavra. Sempre que, pelo meu silêncio artificioso, comprometo a essência política da linguagem, que está inevitavelmente estruturada por uma promessa de veracidade, comprometo também a sociedade e a possibilidade da vida em comum num mundo comum. Esta foi uma lição que o filósofo Immanuel Kant nos deixou e que não devemos tomar de ânimo leve nestes tempos sombrios. 


Data de publicação: 2008-09-16 00:00:00
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