Estatuto Editorial | Editorial | Equipa | O Urbi Errou | Contacto | Arquivo | Edição nº. 362 de 2007-01-09 |
Muito se poderia escrever sobre os tempos modernos a partir dos anúncios de publicidade. O espaço da cidade, as mulheres, os jovens, sobre a cultura popular. Porém, nada disto iremos abordar neste artigo; apenas sobre a forma como a publicidade cria personagens numa espécie de representação (comercial) do mundo.
A personagem mais básica, porque está relacionada com a ostentação da mercadoria, é a de apresentador. Implica uma renovação do discurso publicitário que deixou de incidir numa absoluta referencialidade, pela qual o produto se auto-apresentava, como ainda acontece nos catálogos das grandes superfícies. Através do apresentador, a publicidade passa a ser mediada por um actor, apesar da sua representação e figuração serem básicas. Como a funcionalidade do processo de comunicação é essencialmente deíctica (“eis alguma coisa…”), então a sua performance fundamenta-se numa dinâmica de ‘sinalização’: são os seus dedos que direccionam o olhar do espectador para um produto; as suas mãos que o ostentam para melhor o destacar. Por vezes, na promoção de artigos de vestuário, o seu corpo ganha importância, mas na condição de ser o suporte de um sentido comercial literal, denotativo. Este actor tem um nome: é o manequim (publicitário).
Para além desta categoria existe a do demonstrador. É uma figura cuja performance se consubstancia na contextualização de uma mercadoria em situações de necessidade ou de abundância. A sua presença impõe a emergência do tempo enquanto elemento significante, i.e., a fundação de uma narrativa (publicitária) sobre a maneira de ultrapassar um apuro. Duas personagens centrais integram este enredo: o demonstrador, enquanto influenciador, e o consumidor, como ‘personagem-herói’, protagonista de uma experiência de transição. É possível reconhecer uma ética subjacente a esta história: a da experimentação da felicidade através do conselho de um amigo (o demonstrador), mas também uma configuração retórica (o deliberativo aristotélico). Também é evidente a existência de uma dimensão passional, fundamental nos mecanismos de projecção: o público crê no anúncio porque também sofre como o protagonista; confia no reclame porque quer acreditar no ‘produto-remédio’ proposto; devota-se à publicidade porque já não suporta sofrer. A dramaturgia do demonstrador consiste na fundamentação, passional ou silogística, da satisfação de uma necessidade. Até se descobrem dois tipos de papéis de demonstrador: o de alguém que ultrapassa os problemas expeditamente através da solução do produto anunciado e o ‘fiel amigo’ que aconselha ou dissuade.
Deixámos para o fim duas categorias de actores publicitários, sintomáticas da reformulação do discurso publicitário fundamentado na criação de imagens de marca. Inscrevem-se em processos de comunicação que reduzem os tópicos comerciais a signos de identificação: lema (slogan), logótipo, nome, sigla, hino, símbolo gráfico, ícone (packshot). São regimes que remetem para outros papéis dramáticos relevantes: os de actor e os relativos à celebridade.
Na categoria de actor, a promoção dos produtos fundamenta-se numa contextualização das mercadorias que já não é mais comercial: são as histórias eróticas da Martini, com matizes vagamente cinematográficas, ou as natalícias da Coca-Cola. Distintas estratégias retóricas se insinuam, concretamente as relativas à exploração da reputação dos produtos (género epidíctico), ao mesmo tempo que se assiste a uma dinâmica mitológica e intertextual consubstanciada numa diversidade de estruturas narrativas. De destacar a forma como as mercadorias são significadas enquanto acessórios de toilettes evocativas de estilos de vida. Contudo, consideramos este fenómeno ilustrativo de outra reestruturação do discurso publicitário que fundamenta a exploração da celebridade na publicidade.
Através da celebridade, o discurso publicitário volta ser pouco narrativo, suportado por ilustres, como o Brad Pitt na publicidade da Tag Heuer (“Brad Pitt e o seu Mónaco Automatic”). O que menos conta é a história que ele pode contar, mas a evocação de um imaginário extra-comercial. A sua omnipresença textual (verbal ou iconográfica) contrasta com a desvalorização da marca/mercadoria que promove. Esta só alcança, então, algum privilégio simbólico na condição de ser reconhecida como um elemento (sintáctico) de um look pessoal, ficando metonimicamente ligada a uma história de vida exemplar.
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