Estatuto Editorial | Editorial | Equipa | O Urbi Errou | Contacto | Arquivo | Edição nº. 335 de 2006-07-04 |
Pela primeira vez os estabelecimentos de ensino Superior portugueses estão a seleccionar estudantes para frequentarem os seus cursos; neste caso, maiores de 23 anos que não cumpram os requisitos para aceder ao concurso nacional – por exemplo, ausência do Secundário completo ou das específicas necessárias para concorrer. E digo primeira vez porque este passo representa a extinção das provas ad-hoc, das quais uma parte era realizada em âmbito nacional.
Processos deste tipo não são novidade alguma. Desde sempre as universidades americanas tomam a seu cargo a selecção dos alunos que irão frequentá-las, através da realização de entrevistas e avaliações curriculares. Em Portugal poderiam as universidades ficar melhor servidas se seguissem o mesmo modelo, desde logo porque o actual não consegue medir com grande precisão o valor relativo dos candidatos, devido à heterogeneidade das escolas, à progressiva perda de importância dos exames nacionais na formação da nota de candidatura, e também porque aspectos extra-curriculares da vivência destes jovens (se são músicos, ou dinâmicos dirigentes associativos, ou se praticam voluntariado) são totalmente ignorados. Os rankings que o Público se atreveu a divulgar de há uns anos a esta parte ilustraram bem as fragilidades desta ordenação, ao mostrar em muitos casos uma consistente e assombrosa diferença entre as notas internas e as notas de exame dos estudantes. Mas selecção de estudantes pelas universidades – e que chegou a ser seriamente proposta para cursos de elevada procura como Medicina –, coloca, em países do Sul como Portugal, questões delicadas e que devem ser objecto de amplo debate público.
Por ora, há a registar o enorme sucesso que a candidatura para maiores de 23 anos está a registar no Interior: 107 candidatos na UBI; mais de 200 no IPG; e cerca de 150 no IPCB. Se a isto somarmos que este ano, também pela primeira vez, as vagas por preencher no concurso nacional revertem a favor destes candidatos, percebe-se a importância que o processo está a assumir, especialmente num cenário em que o ministério da tutela pretende deixar de financiar, já no próximo ano, a maioria dos cursos com menos de 20 inscritos.
Porém, de todas as razões para sustentar uma universidade aberta à comunidade, esta, a estritamente económica, que se revê numa lógica de sobrevivência, é de todas a menos boa. É que há muitos outros excelentes motivos para defender a abertura das universidades e politécnicos a novos públicos, desde logo os baixíssimos níveis de qualificação da população portuguesa, que aliados a uma conjuntura em que a capacidade instalada se tornou superior à procura, recomendam vivamente que se encare esta como uma oportunidade a não perder.
Depois, porque todos os que são ainda suficientemente jovens para encararem uma década ou mais no mercado de trabalho sabem – por vezes dolorosamente – que o mundo que se seguiu à II Guerra e à guerra fria mudou, muito, e que aprender ao longo da vida é hoje nas sociedades ocidentais uma necessidade básica de sobrevivência. Os medievais, como deliciosamente relata Peirce, sabiam que para um jovem estudante, aprendido o trivium e o quadrivium, o conjunto de ferramentas intelectuais de que ia necessitar ao longo da vida estava completo. Uma visão deste tipo hoje seria suicidária. Agora, como nunca antes, espera-se de um licenciado que consiga acompanhar as inovações que inevitavelmente ocorrerão no seu campo de saber, e saiba encontrar soluções para problemas cada vez mais complexos, e que ainda nem haviam sido formulados durante os anos em que completava os seus estudos. Mais formação, e ministrada ao longo da vida, é uma das soluções para um ambiente completamente novo como este.
Mas outras coisas ainda mudaram. Hoje as pessoas reformam-se cada vez mais cedo, e vivem cada vez mais. Muitas vezes este afastamento de uma vida activa – voluntário ou forçado – representa o declínio de capacidades físicas e intelectuais, um estiolar das suas aptidões que não deveríamos aceitar como inevitável. Retomar nesta fase da vida, por puro gosto, uma oportunidade que nunca tiveram, é um benefício que trarão a si e aos outros. Está certo que estudar implica custos. Mas tenho para mim – e este é um hunch estritamente pessoal – que a solidão e a falta de interesses sociais e intelectuais representam uma fatia não despicienda dos custos com saúde em Portugal, contribuindo para a sobrecarga do sistema. O que não seria tão mau assim, se tornasse as pessoas mais felizes – mas que o faça está por demonstrar.
Nada mais, portanto, que a velha anedota do copo meio cheio. O actual momento que o ensino superior atravessa pode ser vivido como uma dificuldade e um transe de pura agonia; ou, pelo contrário, como uma janela de oportunidade para sermos o que nunca fomos: um povo mais educado, instruído e feliz.
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