António Fidalgo

O nosso paradoxo natalício


O Natal é, teológica e filosoficamente, um paradoxo: um Deus que se faz carne no seio de uma mulher. Só a fé pode dar sentido a essa narrativa fantástica dos Evangelhos, em que Maria e José se deslocam de Nazaré na Galileia para Belém em Judá e ali chegados se cumpre o tempo de ela dar à luz o filho gerado pelo Espírito de Deus. A esse paradoxo, que se resolve unicamente na crença de que no presépio o Verbo Divino se fez carne, cola-se o nosso prosaico paradoxo natalício: ao despojamento e à pobreza do presépio responde-se hoje com a loucura do consumo, do gastar compulsivo em centros comerciais, em perfumes, jóias, gadgets, bibelots, e demais compras destinadas a presentes.
Obviamente o paradoxo existe somente com a referência ao Natal. Mas o Natal tem sido substituído pelo Pai Natal, pelas renas puxando o trenó, pelas prendas que o enchem, pelas árvores de Natal pejadas de luz e enfeites cintilantes, pelas músicas de sabor natalício, perdendo-se mais e mais a referência original. Perdendo-se essa, desaparece o paradoxo, o de respondermos com consumo à carência do presépio. Ora é justamente a obliteração da referência original que acontece. Com a mundialização do Natal, com a sua imposição comercial a culturas não cristãs, perde o cunho religioso que está na sua origem. O Natal torna-se apenas o período final do ano, associado à festa da passagem do ano, em que, gozando os privilégios de um 14º mês de salário, as pessoas dão presentes umas às outras, e vêem cumprido o seu desejo de adquirir, eventualmente através de uma prenda, os objectos que desejavam ou com que serão surpreendidos. O ter e obter do consumo são o nosso paradoxo ou contraste face ao nada-ter do menino envolto em panos e deitado numa manjedoira.
Tentar encontrar o sentido de Natal através da renúncia seria algo tão louvável, quanto inexequível. O Natal é hoje um evento comercial, social, cultural com um significado próprio, distinto do sentido religioso. O que há a fazer é separar as águas: religiosamente o Natal é uma coisa, comercialmente outra. Mas que uma vivência religiosa do Natal supõe uma contenção do consumo enquanto gula e luxúria, isso não pode ser escamoteado. Sentir o paradoxo ainda é sinal de um eco da referência religiosa. O eco, todavia, vai-se enfraquecendo com a globalização e a secularização. Quiçá dentro de algum tempo já não se sinta ou pressinta qualquer paradoxo.