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O Essencial e a Essência
Odeio, com ódio
verdadeiro, com o único ódio que sinto,
não quem escreve mal português, não
quem não sabe sintaxe, não quem escreve
em ortografia simplificada, mas a página mal escrita,
como pessoa própria, a sintaxe errada, como pessoa
a quem se bata, a ortografia sem ípsilon, como
o escarro directo que me enoja independentemente de quem
o cuspisse.
Bernardo Soares,
Livro do Desassossego.
Há equívocos que se vão insinuando
de tal modo que rapidamente se transformam em certezas,
dados adquiridos, e com um bocadinho de sorte (ou azar)
em premissas. E há palavras que parecem já
nascer destinadas a esses equívocos que se enraízam
de forma intricada nas inteligências pensantes,
até alcançarem a confortável posição
de lugar comum. A maior parte das opiniões sobre
a Língua, a Literatura e aquilo a que, de forma
convenientemente vaga, chamamos Cultura conseguiu alcançar
este estatuto de equívoco institucionalizado. Continuamos
a pensar na língua, na literatura, como representantes:
a língua como representante do pensamento, a literatura
como representante do mundo, como se houvesse pensamento,
como se houvesse mundo, muito para além daqueles
que conseguimos construir, decifrar, através das
palavras.
Quando, todos os anos, os professores se deparam com alunos
que exibem um ingénuo desconhecimento da sua própria
língua materna, não se devem indignar, com
um vago sentimento de desconforto, somente por estarem
perante alunos empobrecidos, nem por temerem uma futura
vaga de licenciados iletrados. Isto tem, sem dúvida,
a sua gravidade. Independentemente das profissões
para que os estejamos a preparar – engenheiros,
professores, ou designers –, eles serão,
acima de tudo, licenciados; e tal adjectivo costumava
ter um significado oposto ao de iliteracia. Mas, por si
só, esta até seria uma questão menor.
Na verdade, as palavras mudam e, ao longo dos tempos,
vão adquirindo novos significados, por muito que
nos custe, incomode, aflija. O problema, este, sim, mais
fundo e grave, é que a cultura não serve
para enriquecer, serve para ser; tal como conhecer –
conhecer bem – a nossa língua não
serve só para melhor traduzirmos as nossas ideias;
muito para além disso, serve para as termos: serve,
aliás, para que as consigamos ser. Saber escrever
bem português não pode ser um privilégio
dos alunos de Letras, de humanidades. Não é
compreensível a razão por que um engenheiro
(ou um médico, um arquitecto, um artista) deva
ter um mais pobre domínio da sua língua
materna do que um professor de Língua Portuguesa.
O que está em causa não é um conhecimento
teórico, um conhecimento de conteúdos, se
lhe quisermos chamar assim, mas uma simples questão
de competências. E é competência linguística
aquilo que falta aos alunos que chegam ao ensino superior.
Falta-lhes tratar por tu a sua própria
língua, a sua cultura, a sua literatura. A sua
língua materna (a língua escrita, mas também
a falada) deixou de lhes ser natural. Pelo contrário,
é-lhes estranha. É alguma coisa –
uma espécie de ganga – que carregam consigo
como uma incómoda pertença: algo que têm,
mas não algo que sejam.
Indignarmo-nos por os nossos estudantes iniciarem os seus
estudos universitários nestas condições
é, evidentemente, legítimo, e é justo
que critiquemos os programas e os métodos de ensino
dos anos que antecedem a sua entrada na Universidade.
Agora, o que não podemos fazer é assobiar
para o lado, permitindo que os alunos abandonem as nossas
faculdades igualmente órfãos de competências.
Há que familiarizá-los com a língua,
com a literatura, com a cultura. E assumir, como finalidade,
o que devia ser um óbvio ponto de partida.
Eça, pela boca do abade Custódio, reclamava
o latim como sendo a base, a basezinha. As bases exigidas
hoje serão mais comedidas: saber português,
também o português da literatura, da poesia,
que acrescenta mais mundo ao mundo à nossa volta,
não pode ser visto como o luxo a que uma intelectualidade
visionária se dedica; como um adereço ornamental
que vagamente gravita em torno de outras matérias
importantes, nucleares. É que a Língua Portuguesa,
a Literatura, a Poesia, a Cultura, não são
o acessório, ao contrário daquilo que se
vai pensando, mesmo que se o não diga. A nossa
língua é ela mesma a base, a nossa modesta
basezinha. Por isso, quando se ouve falar dos projectos
de reestruturação de licenciaturas que Bolonha
propõe, buscando reduzir os curricula
dos cursos às disciplinas essenciais, há
uma inquietação que vai crescendo. É
que é preciso atenção: de pouco nos
serve o essencial, se deitarmos fora a essência. |