Rita Taborda Duarte

O Essencial e a Essência


Odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como pessoa a quem se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Bernardo Soares, Livro do Desassossego.

Há equívocos que se vão insinuando de tal modo que rapidamente se transformam em certezas, dados adquiridos, e com um bocadinho de sorte (ou azar) em premissas. E há palavras que parecem já nascer destinadas a esses equívocos que se enraízam de forma intricada nas inteligências pensantes, até alcançarem a confortável posição de lugar comum. A maior parte das opiniões sobre a Língua, a Literatura e aquilo a que, de forma convenientemente vaga, chamamos Cultura conseguiu alcançar este estatuto de equívoco institucionalizado. Continuamos a pensar na língua, na literatura, como representantes: a língua como representante do pensamento, a literatura como representante do mundo, como se houvesse pensamento, como se houvesse mundo, muito para além daqueles que conseguimos construir, decifrar, através das palavras.
Quando, todos os anos, os professores se deparam com alunos que exibem um ingénuo desconhecimento da sua própria língua materna, não se devem indignar, com um vago sentimento de desconforto, somente por estarem perante alunos empobrecidos, nem por temerem uma futura vaga de licenciados iletrados. Isto tem, sem dúvida, a sua gravidade. Independentemente das profissões para que os estejamos a preparar – engenheiros, professores, ou designers –, eles serão, acima de tudo, licenciados; e tal adjectivo costumava ter um significado oposto ao de iliteracia. Mas, por si só, esta até seria uma questão menor. Na verdade, as palavras mudam e, ao longo dos tempos, vão adquirindo novos significados, por muito que nos custe, incomode, aflija. O problema, este, sim, mais fundo e grave, é que a cultura não serve para enriquecer, serve para ser; tal como conhecer – conhecer bem – a nossa língua não serve só para melhor traduzirmos as nossas ideias; muito para além disso, serve para as termos: serve, aliás, para que as consigamos ser. Saber escrever bem português não pode ser um privilégio dos alunos de Letras, de humanidades. Não é compreensível a razão por que um engenheiro (ou um médico, um arquitecto, um artista) deva ter um mais pobre domínio da sua língua materna do que um professor de Língua Portuguesa. O que está em causa não é um conhecimento teórico, um conhecimento de conteúdos, se lhe quisermos chamar assim, mas uma simples questão de competências. E é competência linguística aquilo que falta aos alunos que chegam ao ensino superior. Falta-lhes tratar por tu a sua própria língua, a sua cultura, a sua literatura. A sua língua materna (a língua escrita, mas também a falada) deixou de lhes ser natural. Pelo contrário, é-lhes estranha. É alguma coisa – uma espécie de ganga – que carregam consigo como uma incómoda pertença: algo que têm, mas não algo que sejam.
Indignarmo-nos por os nossos estudantes iniciarem os seus estudos universitários nestas condições é, evidentemente, legítimo, e é justo que critiquemos os programas e os métodos de ensino dos anos que antecedem a sua entrada na Universidade. Agora, o que não podemos fazer é assobiar para o lado, permitindo que os alunos abandonem as nossas faculdades igualmente órfãos de competências. Há que familiarizá-los com a língua, com a literatura, com a cultura. E assumir, como finalidade, o que devia ser um óbvio ponto de partida.
Eça, pela boca do abade Custódio, reclamava o latim como sendo a base, a basezinha. As bases exigidas hoje serão mais comedidas: saber português, também o português da literatura, da poesia, que acrescenta mais mundo ao mundo à nossa volta, não pode ser visto como o luxo a que uma intelectualidade visionária se dedica; como um adereço ornamental que vagamente gravita em torno de outras matérias importantes, nucleares. É que a Língua Portuguesa, a Literatura, a Poesia, a Cultura, não são o acessório, ao contrário daquilo que se vai pensando, mesmo que se o não diga. A nossa língua é ela mesma a base, a nossa modesta basezinha. Por isso, quando se ouve falar dos projectos de reestruturação de licenciaturas que Bolonha propõe, buscando reduzir os curricula dos cursos às disciplinas essenciais, há uma inquietação que vai crescendo. É que é preciso atenção: de pouco nos serve o essencial, se deitarmos fora a essência.