António Fidalgo
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O miserabilismo noticioso
Os telejornais portugueses são uma montra das misérias, das mágoas e queixumes da alma lusa. Não há desgraça comezinha que a televisão não invista da dignidade de notícia televisiva, passando-a em horário nobre. Uma casa ameaça ruir e uma família vive lá dentro? Desde que seja possível filmar um tecto esburacado a espreitar o céu, umas bacias a aparar a água da chuva, então temos notícia. Uma escola primária fecha numa aldeia do interior porque não há crianças? Mostre-se então antes do encerramento a criança que joga sozinha no recreio com a professora. Em que outra parte do mundo seriam estes episódios triviais notícias de telejornal de horário nobre? Só no país miserabilista de António Nobre, do país onde tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é fado.
Honra seja feita ao poeta que adverte da tristeza de tanta miséria: “ Mas, tende cautela, não vos faça mal ... / Que é o livro mais triste que há em Portugal ”. Vivesse ele nos nossos dias, e não terminaria tal como o fez: “ Qu' é dos Pintores do meu país estranho,/ Onde estão eles que não vêm pintar? ” Com efeito as televisões mostram melhor que qualquer aguarela aquilo que o poeta queria mostrar a Georges, as misérias do seu Portugal:
Tísicos! Doidos! Nus! Velhos a ler a sina!
Etnas de carne! Jobes! Flores! Lázaros! Cristos!
Mártires! Cães! Dálias de pus! Olhos-fechados!
Reumáticos! Anões! Deliriums-trémens! Quistos!
Monstros, fenómenos, aflitos, aleijados,
Talvez lá dentro com perfeitos corações:
Todos, à uma, mugem roucas ladainhas,
Trágicos, uivam “uma esmolinha plas alminhas
Das suas obrigações!”
Pelo nariz corre-lhes pus, gangrena, ranho!
E, coitadinhos! fedem tanto: é de arrasar ”
É de arrasar sim a desgraceira nacional, a dita por António Nobre e a filmada pelas televisões. Nenhum outro público que não o luso aguentaria a ladainha de misérias que a RTP, a SIC e a TVI se comprazem em mostrar uma e outra vez, todos os dias da semana nos telejornais que se prolongam cada vez mais. Não fora Portugal um país de 8 séculos e já a loja teria fechado. Alguém imagina as televisões de França ou de Espanha passando a quantidade de misérias, humanas sim, mas com certeza sem qualquer valor noticioso, que as nossas passam? Lá mostra-se a glória da Pátria e a grandeza da nação, aqui mostra-se a choupana da Tia Joaquina de Cebolais de Baixo.
Os portugueses andam deprimidos e comprazem-se na depressão. As televisões ajudam. Que importa que Portugal tenha dado um salto de gigante nos últimos 20 anos, que o nosso nível de competitividade seja superior ao de França e de Espanha, que a qualidade dos nossos engenheiros seja apreciada, que empresas multinacionais tenham em Portugal as suas fábricas mais eficientes e rentáveis, que os doutoramentos em Portugal sejam dos mais exigentes em todo o mundo, que importa tudo isso se é positivo e não encaixa bem no retrato do miserabilismo luso?
Pode ser que só as notícias más sejam boas notícias, mas não há teoria da notícia que diga que toda a miséria é uma notícia. Se os telejornais durassem apenas os 15 a 20 minutos que duram os congéneres da Alemanha, Inglaterra e França, provavelmente que não lhes sobraria tempo para as desgraças com que preenchem os outros 45 minutos da hora em que estão no ar.
Entra-se num círculo vicioso. Os portugueses têm de há muito a ideia de serem uns coitados (o livro de António Nobre data de 1900). As televisões respondem a essa ideia, corroborando-a e reforçando-a. Somos coitadinhos, sim senhor. Dantes eram as estradas cheias de buracos, agora que temos auto-estradas das melhores temos o buraco do orçamento que causaram. Dantes tínhamos o flagelo do trabalho infantil, agora temos os chumbos a matemática das crianças que passaram a ir à escola. Dantes faltavam-nos políticos em postos chave na cena internacional, agora temos Guterres e Barroso que fugiram da política nacional.
Os telejornais não devem converter-se em propaganda, nem tão pouco lhes cabe a função de espevitarem a auto-estima nacional. Mas também não lhes queda bem, pelo menos à objectividade noticiosa, o serem escarafunchadores das misérias e dos complexos de inferioridade da nação.
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