António Bento

A dissolução do «Estado de Direito» sob a acção dos partidos políticos


É preciso afirmá-lo de maneira clara: os partidos políticos são a causa da actual degradação dos princípios jurídicos do «Estado de direito» tal como este se encontra consagrado na Constituição da República Portuguesa.
Atirada que foi para 2013 a efectivação da limitação de mandatos dos autarcas, a partir de agora, o cidadão de um tal «Estado de direito», que é o que República Portuguesa diz querer ser, fica a saber que os principais partidos políticos acertaram entre si o calendário da extorsão autárquica, negociando o assalto legal de alguns comissários de partido ao Estado e, com ele, estabelecendo porventura o princípio de desagregação do próprio Estado. Muito bem! Mais clareza não pode ser aqui exigida. Como diz Carl Schmitt na sua «Doutrina da Constituição», um estudo que descreve como nenhum outro a flexibilidade e a ambiguidade do conceito de «Estado de direito»: «Isto significa legitimar e eternizar o status quo vigente e considerar os “direitos bem adquiridos” – sejam os do indivíduo, sejam os de esta associação ou os daquela corporação – mais valiosos do que a existência política e a segurança do Estado».
Não é, pois, a «sociedade civil» que aqui é chamada a responder, mas os partidos políticos, que se desajustam cada vez mais dela, impedindo assim a existência e a expressão adequadas do «Estado». Com efeito, a postergação do combate à corrupção, tacitamente expressa no acordo parlamentar sobre a limitação de mandatos dos autarcas, é o sinal do declínio do próprio Parlamento enquanto instituição política. Perdendo o sentido eminentemente político do direito que nele está representado, o Parlamento, em vez de chegar a decisões comensuráveis ou proporcionais a um tal direito, a decisões dignas desse direito, pratica a política hipócrita do compromisso e a negociação despudorada do espólio das prebendas oficiais. Era já esta uma das consequências da «profissionalização da política» que Max Weber tão bem soube descrever quando analisou o significado, para a formação e a estrutura dos partidos políticos, do «spoils system» norte-americano.
Com efeito, com o beneplácito, usurpado, do princípio da divisão (distinção) dos poderes próprio do «Estado de direito», e ocultando-se por detrás de uma ordenação jurídica normativa a que corresponde um sistema de regras quase sempre abstractas, a Assembleia da República Portuguesa propõe-se legislar, a céu aberto, a corrupção do próprio Estado cuja vontade ela supõe representar. Porém, este Parlamento, como titular do direito, já não representa, no sentido do direito público, ele actua apenas como representação dos interesses e já (ou ainda) não como representação nacional. O Parlamento é aqui uma mera comissão de interesses partidários e um meio para a expressão da opinião pública dos seus delegados (e não representantes).
Contudo, que o Parlamento da República Portuguesa deixe de ser o representante da unidade política do Estado e se converta num expoente dos interesses dos principais partidos políticos e das disposições de ânimo dos seus comissários, como actualmente parece estar a acontecer, isso quer apenas dizer que se assiste agora a uma representação contra o Parlamento, cuja pretensão de ser uma representação se encontra, por isso mesmo, transformada, se não mesmo anulada. Porque, com a ideia de que o parlamentarismo significa um domínio do Parlamento, isto é, neste caso, um domínio da representação dos interesses partidários sobre o Governo, é o próprio princípio da divisão de poderes ínsito ao «Estado de direito» que se vê suprimido em benefício de uma espécie de absolutismo (inconstitucional) de um tal Parlamento.
Por isso, ainda que pareça ser o Governo a ter o primado sobre o Parlamento e não o inverso, dá-se hoje uma dependência do Governo, uma mera comissão dos partidos, do Parlamento, sendo o Parlamento uma comissão dos delegados partidários. Há, por isso, que afirmá-lo em voz alta e pô-lo em letra impressa: o «Estado de direito» da República Portuguesa é hoje um mero Corpo Eleitoral Partidário.
Do ponto de vista da sua formulação jurídica liberal, aquela que aqui se defende, o problema da representatividade do Parlamento é, porém, muito simples: que o Parlamento já (ou ainda) não represente, no sentido burkeano do «No taxation without representation», significa aqui duas coisas: 1) que apenas quem paga impostos deve estar representado no Parlamento; 2) que quem não está representado no Parlamento não deve pagar impostos. Ora, no actual Parlamento da República Portuguesa, não se verifica nem a primeira nem a segunda destas condições. Essa a razão por que, ao escutar a falaciosa sentença do dito ambíguo de Montesquieu, segundo o qual «Il faut que, par la disposition des choses, le pouvoir arrête le pouvoir», qualquer constitucionalista escrupuloso observará, sem dificuldade, que o actual «Estado de direito» da República Portuguesa mina os fundamentos da existência do próprio Estado tal como este é propugnado pela Constituição em vigor.
A isto se resume a actuação dos partidos políticos que compõem o Parlamento da República Portuguesa no caso vertente do acordo partidário sobre a limitação do mandato dos autarcas. Donde que o mínimo que se pode concluir é que se torna necessário fiscalizar a acção do Parlamento da República Portuguesa. Como diz o poeta Fernando Pessoa: «Sim, está tudo certo. Está tudo perfeitamente certo... E, excepto estar errado, é assim mesmo, está certo...»