Está em palco a mais recente produção da Quarta Parede
Memórias agridoces
“Sabor” a Stracciatella

Estórias simples e memórias contadas não apenas por palavras, mas também por movimentos, sons, paisagens e aromas. Tudo isto se sentiu, viu e cheirou em Stracciatella, a primeira criação da Quarta-Parede, que estará em cena no Fundão até dia 23.


Carla Loureiro
NC / Urbi et Orbi


Um estendal de roupa, um armário cheio de frascos e frasquinhos contendo mensagens, um confessionário, a sala de espera, paisagens, ecrã. Enfim, um espaço híbrido e intimista por onde o espectador é conduzido. À sua espera estão memórias fragmentadas e díspares, estórias simplicistas, mas cheias de sentimentos, doces e amargos. Olhares, imagens, aromas e sons que tentam corporizar as lembranças de outros. É neste universo mnemónico que tem lugar Stracciatella, a primeira criação teatral da Quarta-Parede – Associação de Artes Performativas da Covilhã –, que esteve em palco no Teatro-Cine da Covilhã.
Inspirada em estórias de covilhanenses e baseada em imagens recolhidas pelas actrizes Sílvia Ferreira e Jeannine Trédivic num lar de idosos, a performance estabelece relações entre vários objectos da memória com os sons e imagens, num verdadeiro olhar poética e artisticamente desassombrado de uma normal expedição pelo quotidiano. E se qualquer um dos quatro espectadores que assistiu a uma das sessões quiser encontrar uma moral em Stracciatella, que não o faça. Ou então que não pense muito. “Não existe qualquer tipo de moralidade nesta performance. Há, sim, uma grande vontade de fazer teatro partindo das pessoas para as pessoas, suscitando-lhes emoções, fazê-las pensar”, diz Sílvia Ferreira, para quem o fundamental deste espectáculo é a tentativa de tornar especial artisticamente a vida de alguém. Uma visão partilhada pela colega de cena, Jeannine Trévivic, até porque, refere, “as histórias que aqui são contadas não têm princípio, meio e fim. Estão todas misturadas, transformando-se, por vezes, em imagens, sons e movimentos”. Uma atitude simples, sem, no entanto, cair numa banalização de gestos quotidianos.
Mas nem tudo se revelou fácil no processo de criação de Stracciatella. Das maiores dificuldades foi mesmo a escolha das estórias, dos objectos e das imagens, pois, como conta Jeaninne, “era tudo tão interessante”. E o porquê de apenas quatro espectadores por sessão? As razões, que podem não parecer óbvias, são dadas: “Só assim se podia criar esse ambiente intimista e de proximidade com o público”, explica Sílvia Ferreira. “Se esta peça se passasse num palco, a distância não permitira essa intimidade”, acrescenta.
Stracciatella, que depois do palco covilhanense segue para o Fundão para ser apresentada na Festival CALE, a 23, é um projecto conceptual de uma instalação minimalista de muitos pormenores, resultado de momentos confessionais, mas também um espectáculo agridoce, reflexo de muitas vidas. Uma “amálgama de estórias simples que visa presentear as memórias de alguém à memória de todos”. Uma ideia concretizada através da oferta de um frasco ao espectador. Um frasco retirado do “reservatório” da memória, contendo um pedaço de uma história de alguém. Uma história que por mais amarga que seja se torna doce com o sabor do pedaço de gelado … de Stracciatella, comido com a simplicidade que caracteriza muitos dos nossos actos e das nossas memórias.