António Fidalgo
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Outras coisas
Outras coisas que não
o défice do orçamento de Estado, o corte
das regalias sociais e os atentados aos direitos adquiridos,
as greves dos professores e dos outros funcionários
públicos, as reformas adiadas e o fim dos privilégios
dos políticos. De há uns tempos para cá
parece que Portugal se encolheu às contas de Estado,
aos impostos e à contenção da despesa
pública. Não se fala de outra coisa, pelos
menos nos órgãos de comunicação
social, não se pensa noutra coisa e há até
quem se interrogue sobre a viabilidade de Portugal. Caso
efectivamente para dizer: que catastrofistas!
Falemos de outras coisas, que as há, muito mais
importantes, exactamente, muito mais importantes. A saúde,
a amizade, a felicidade, a dor, o sofrimento, a doença,
a morte, a alegria, a festa, o amor, a religião,
a fé, a crença e a descrença na imortalidade,
a esperança, o carinho, nada têm a ver com
as contas do Estado. Falemos da vontade de saber, do prazer
de ouvir uma boa música, de ler um bom livro, de
saborear umas boas cerejas, de encher os pulmões
do ar matinal quando o sol se levanta, de sentir na pele
a brisa da tarde de um dia de verão, de contemplar
o nascer de uma lua bem cheia. Falemos dos afectos, da
tristeza e da alegria de um amigo, da felicidade e da
infelicidade do amante e da amada, da solidariedade e
da fidelidade de um companheiro ou de um colega de trabalho.
E nada disto, do que verdadeiramente conta, depende das
contas curtas do Estado.
Com défice ou sem défice de Estado a vida
continua, como continua haja frio ou calor, morra este
ou aquele, seja Portugal mais rico ou mais pobre. É
isto desconversar? Certamente que não. Das pessoas
consideradas imprescindíveis e insubstituíveis
se diz que delas estão os cemitérios cheios.
Regista-se o óbvio, a transitoriedade da vida humana.
A morte tanto ceifa o rei como o escravo, levando um e
outro à terra e convertendo-os no mesmo pó.
Da mesma maneira o fluxo inexorável da vida levará
consigo as coisas que hoje ocupam todo o espaço
mediático, atirando-as para o olvido ou para as
notas de roda pé dos futuros compêndios de
história. Os temas ou a agenda dos médias
mudam sucessivamente, às vezes acompanhando as
preocupações reais das pessoas, outras vezes
nem tanto, como as modas que se sucedem.
É falando das outras coisas, das que de tão
básicas nem nos damos conta delas, que damos conta
da pequena dimensão daquelas de que falamos no
dia a dia. Não deixaremos certamente de falar destas,
nem poderemos deixar de fazer, mas fá-lo-emos de
outra maneira, isto é, numa escala bem mais pequena.
É que a nossa dimensão é também
a dimensão daquilo de que falamos e daquilo com
que nos preocupamos.
Na universidade preocupamo-nos com a falta de candidatos
ao ensino superior, com os cursos que não têm
alunos, com as verbas insuficientes que vêm do orçamento
de Estado, com a redução de verbas para
funcionamento. E é bom que nos preocupemos. Mas
desde que na devida conta. Existem outras coisas que não
devem passar despercebidas e muito menos cultivadas. As
horas de estudo, ora embrenhados na leitura de um livro
ou de um artigo, ora escrevendo, riscando, reescrevendo,
cortando, lutando com a propriedade de palavra ou a construção
e elegância de uma frase, com a sequência
lógica e sintáctica de um parágrafo.
As aulas bem preparadas, vividas com intensidade, concentrados
nos alunos e na aprendizagem, na averiguação
do que sabem até ali, do colmatar lacunas essenciais
e depois avançar com a nova matéria, fazendo-o
de modo claro, acessível, repetindo e explicando
as vezes necessárias, verificar se o que se está
a ensinar faz sentidos para os alunos, se estão
a apreender o que se lhes ensina. As conversas com os
colegas, uma boa discussão ao almoço ou
numa ida ao bar, a troca de ideias e o confronto de razões,
os temas de investigação que os ocupam,
as indicações surpreendentes de bibliografia,
os métodos encetados, os projectos na forja e em
curso. Que riqueza, santo Deus, mesmo ali ao lado, de
outras coisas que não são as das contas
curtas de orçamentos.
No fundo, lá no fundo, é o sentido de tudo
isto, do que fazemos, onde consumimos os dias, do que
não fazemos, do que falamos e do que não
falamos, dos actos e das omissões, que está
em causa. E a moral da história, como nos contos
antigos,é a de que, ainda estando nestas coisas,
haja a disponibilidade e a vontade para pensar e falar
as outras coisas.
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