António Fidalgo

Duas visões do trabalho


Na narrativa bíblica da criação do mundo, no livro do Génesis, o trabalho aparece como consequência do pecado, como um castigo. Expulso do paraíso, o homem é condenado a ganhar o pão com o suor do rosto. Mesmo na Grécia antiga, o trabalho é visto como uma necessidade vil reservado a escravos e a servos. Os cidadãos, os homens livres, deveriam dispor de tempo para democraticamente participar na governação da cidade ou pólis. Essa participação consumia muito tempo e exigia que os cidadãos vissem as necessidades de sobrevivência, alimentação, vestuário, satisfeitas pelos escravos. Ainda na Idade Média, os senhores viam o trabalho como uma actividade de servos, sendo actividades nobres a guerra e a caça.

Que sucedeu entretanto para que hoje o trabalho já não seja encarado como imposição necessária à sobrevivência, como castigo, mas como um direito de todos e que a maldição do tempo presente seja a falta de trabalho? Muita coisa aconteceu, desde logo a concepção religiosa da modernidade em que o trabalho aparece como meio de santificação e não como condenação. Seguindo a visão de S. Paulo de que o pecado original foi um mal bom (feliz culpa) que nos trouxe o Salvador, também o trabalho passa a ser encarado como um meio de o homem participar na obra da redenção. Além disso, com o triunfo da burguesia nos séculos XVIII e XIX e com a ideia do progresso, o trabalho aparece revestido, agora de um ponto de vista secular e já não religioso, como um instrumento de emancipação do homem face às necessidades, à fome e à miséria, e como um meio de conquista de um mundo melhor. O trabalho ganha uma dignidade que nunca antes tivera.

Basta ler Os Fidalgos da Casa Mourisca de Júlio Dinis para nos darmos conta de como se dá essa transição na sociedade portuguesa na segunda metade do século XIX. Maurício encarna o fidalgote que consome o tempo em devaneios, em ociosidade, desbaratando o dinheiro da família. Por sua vez, Tomé, o lavrador, aparece como o modelo do homem que labuta, que sobe na vida à custa do trabalho. O trabalho torna-se uma honra e o ócio uma desonra.

O direito ao trabalho que as sociedades mais desenvolvidas advogam é o direito de cada indivíduo participar na vida colectiva, de aí ter um espaço de afirmação, de uma palavra a dizer na construção de um mundo que se altera a velocidade estonteante. Embora o Estado Social predominante na Europa já não deixe ninguém morrer à fome, o que importa hoje a um cidadão enquanto tal é não se encontrar numa situação de incapaz ou de parasita. Mais do que uma simples dimensão económica, o trabalho ganhou, num mundo sem sentido religioso, o próprio sentido da vida. À falta de sagrado, sacralizou-se o trabalho. O que numa perspectiva bíblica não pode deixar de ser visto como uma idolatria.