António Fidalgo
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Descrições,
distinções e decisões
Já há
muito que Portugal se debate com as causas do seu atraso.
Antero de Quental, na primeira conferência do Casino,
em 1871, analisava os fenómenos morais, políticos
e económicos em que enraizava a decadência
dos povos peninsulares. O pessimismo da sua geração
sobre o estado do país persiste hoje. Como então
continuamos na cauda da Europa e as expectativas de invertermos
a situação são desanimadoras.
Fugindo ao fatalismo de que é fado sermos assim
e não há nada a fazer, e evitando simultaneamente
voluntarismos inconsistentes de resolver em meia dúzia
de anos um problema secular, resta-nos o percurso simples
e longo de ver precisamente em que consiste o nosso atraso,
de não comparar o que é diferente, e de
tomar as decisões adequadas. Ou seja, importa proceder
a descrições, distinções e
decisões. Descrever é a primeira forma de
conhecer. Antes de explicar o que quer que seja, e muito
antes de apontar metas e soluções, há
que conhecê-lo. Para descrever é preciso
saber ver. Podem todos olhar para uma mesma coisa, mas
cada um verá melhor ou pior, conforme a sua faculdade
de ver. Não é um problema de oculista, mas
um problema de preparação e de apacitação.
Sim, aprende-se também a ver. Dois médicos
podem ver o mesmo doente, mas um bom médico verá
muito mais que um mau médico; aquele vê o
que este não vê.
Uma descrição de Portugal e do seu atraso
exige tempo, preparação e estudo. Só
assim teremos os pés assentes na terra e não
se corre o risco de ignorar problemas reais e de dar soluções
a problemas inexistentes. Vê-se muitas vezes apenas
o que se quer ou o que os preconceitos deixam ver. As
descrições são uma forma adequada
de testar a visão que se tem das coisas. Só
mediante a descrição é que se toma
conhecimento da forma como os outros vêem o que
nós vemos e podemos corrigir mutuamente a nossa
visão e a deles. Nada, mas nada, pode substituir
o trabalho da descrição.
Depois há que distinguir. As generalizações
habituais de que os políticos são maus,
de que os portugueses se contentam com pouco, são
tão fáceis e rápidas quanto curtas
e erradas. Fazer distinções é sinal
de que se vê melhor, com mais pormenor. É
certamente também um sinal de inteligência.
Fazer ressalvas, colocar um “mas” à
frente de uma afirmação, é descrever
com mais detalhe coisas e estados de coisas. Em Portugal
nem todos os políticos são maus, nem todos
os portugueses se contentam com pouco, nem todas as escolas
são más. Mesmo quando se fala de um sistema,
seja ele político ou educacional, por exemplo,
há que distinguir. Dizer que a culpa é do
sistema é miopia ou preguiça de análise.
Um sistema tem partes e é distinguindo-as que se
encontram os defeitos e as virtualidades do sistema como
do quer que seja.
Reconhecer o atraso de Portugal relativamente aos outros
países europeus não significa que tudo em
Portugal é mais atrasado, do jeito “é
tudo um atraso de vida” ou “só em Portugal”.
Posições generalistas desse tipo são
derrotistas. Só se pode melhorar fazendo distinções,
pois que melhorar implica corrigir ou modificar o mesmo
e não substituir por outro. E mesmo nos sectores
considerados tão bons como os melhores europeus
há que distinguir os que são melhores e
piores, como nos sectores manifestamente mais atrasados
há certamente elementos positivos a destacar. A
cultura de avaliação que se tenta inculcar
em Portugal assenta na capacidade de distinguir. Avaliar
é distinguir mediante uma escala de valores. Por
fim, cabe tomar decisões. Arrastar um problema,
adiar uma solução, é certamente mais
fácil que decidir. Na decisão há
sempre um corte, uma ruptura entre o antes e o depois,
uma opção entre possíveis escolhas.
É por não ser fácil decidir que há
quem evite decidir ou deseje que outros decidam por ele.
Decidir é também assumir responsabilidades
pela opção tomada, carregar com o fardo
de ter decidido assim e não de outra maneira. O
atraso pode advir da falta de decisões a tempo.
Em certas circunstâncias mais vale uma decisão
menos boa a tempo do que uma boa já fora de tempo.
Em Portugal, em certos sectores, nomeadamente na parte
administrativa do Estado, faz falta uma cultura de decisão.
Limitar-se a cumprir ordens, evitar a todo o custo tomar
decisões que o comprometam, é altamente
paralisante da actividade pública.
As universidades na dupla vertente de instituições
de estudo (descrição e distinção)
e de formação das elites nacionais (a quem
compete tomar as principais decisões) têm
um papel fundamental num país que quer recuperar
do atraso em que se encontra há séculos.
Maior vergonha do que o atraso é nada fazer para
o ultrapassar.
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