Anabela Gradim
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Maria Fernanda
«Maria
Fernanda foi estrangulada pelo marido a 28 de Maio de
2002, na sequência de uma discussão»,
vinha nas notícias.
Hoje tenho sorte a fazer este editorial. Não é
um comentário, nem é preciso comentar. Só
alinhar uns quantos factos sobre Maria Fernanda, que deixou
dois órfãos, com a devida vénia a
quem os investigou. O exercício do comentário,
caro leitor, desta vez especialíssimo, cabe-lhe
a si. Leia, por favor, e comente. Leia este texto em voz
alta nas aulas, no café, no autocarro, ou no emprego.
Divulgue-o, ou à notícia que lhe deu origem,
o mais possível. Comentem-no, por favor, o mais
que puderem.
Passou quase despercebida a pequena notícia que
o Público apresentava na secção de
Sociedade do jornal da última quarta-feira. Rezava
assim: «O Supremo Tribunal de Justiça (STJ)
atenuou a pena de prisão de um homicida que estrangulou
a própria mulher até à morte por
considerar que as atitudes desta terão contribuído
para o desfecho fatal da relação».
Ficamos assim a saber que em Portugal, no ano da graça
de 2004, entre as atitudes que podem contribuir para o
desfecho fatal de relações contam-se, continuo
a citar o diário: «levantamentos bancários
deixando as contas do casal a zero, a ponto de o arguido
ficar sem dinheiro para pagar o [um] almoço; (…)
deixou algumas vezes esturricar a comida que confeccionava;
chegou a sair e a chegar a casa de noite; ia tomar café
a um estabelecimento de cafetaria e não deu conhecimento
ao arguido de uma deslocação; chegou a mostrar
a barriga quando se encontrava junto de pessoas amigas
e se falava da condição física de
cada uma delas». As agressões do arguido
sobre a vítima foram também desvalorizadas.
«Os juízes desvalorizam os maus tratos (insultos,
murros, estalos e pontapés) infligidos pelo arguido
à mulher e dados como provado em duas situações.
Num dos casos, as feridas e os hematomas deram lugar a
um período de doença de seis dias. "À
parte as desavenças conjugais (onde, por regra,
não existe apenas um culpado) que conduziram à
criminalidade em apreço, o arguido mostra-se socialmente
inserido», consideraram. Mais: «dedicou toda
a sua vida ao trabalho na construção civil"
e sempre zelou pela educação dos seus dois
filhos, preocupando-se com o seu futuro»; ah, já
me esquecia: dois filhos muito estimados que tornou órfãos.
Há pouco tempo também um outro homicida
da mulher viu a sua pena aliviada por ter cometido o crime
convencido de que esta lhe era infiel. Na verdade não
o era, mas o homem que era muito simples estava convencido
de que sim, e isso determinou uma maior brandura por parte
tribunal. Enfim, pesos e medidas que são considerados
intoleráveis em sítios terminados em «ão»
como Paquistão, ou Afeganistão.
No mesmo dia da primeira notícia a UMAR (União
de Mulheres Alternativa e Resposta) listava em Portugal
47 mulheres e três filhos assassinados pelos companheiros,
só no ano de 2003, numa estatística que
deve pecar por defeito. Aqui ao lado os espanhóis
revelam-se também extremamente violentos, e têm
números iguais ou superiores aos nossos (68 mortos).
Ao mesmo tempo, estudos académicos revelam que
as relações entre os jovens são particularmente
violentas, e que entre casais de namorados se banalizam
comportamentos como a agressão verbal ou física,
que são considerados naturais. Se agora cruzarmos
isto com violência que os mesmos jovens revelam
em algumas praxes académicas, num espírito
que se propaga como fogo em palha seca por todo o país
– e que estes das praxes não trabalham na
construção civil, antes são uma pequena
elite – percebemos que o futuro da violência
doméstica, sobre namoradas, companheiras, mulheres
e filhos, não tem os dias contados.
Confesso desta vez que me faltam palavras para comentar
estes quatro factos, e além disso mói-me
o cerebelo uma preocupação subliminar extra:
tenho que ir, não vá queimar-se o feijão.
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