URBI - Como
foi o seu percurso académico?
José Calheiros - Sou uma pessoa normal,
aluno de boas classificações no liceu, também
em termos das médias habituais das faculdades de
medicina do Porto, tenho excelentes classificações
das entradas para os internatos. Mas devo dizer que a
grande motivação aparece quando vou parar
ao serviço médico da periferia, no dia em
que, após o 25 de Abril, eu e cerca de 50 colegas
fomos para Mafra, já com a revolução
feita, e fomos destacados para vários sítios.
Eu fui parar à ilha de Santa Maria nos Açores.
Com um médico local com características
muito especiais, que tinha cerca de seis mil pacientes
e muitos em conflito com ele. Acabado de sair do sexto
ano de licenciatura e um ano de internato geral, fui confrontado
com a realidade pela primeira vez. Era uma situação
completamente nova para a qual nenhum de nós foi
preparado adequadamente.
Aprendi imenso, e nessa altura tive a felicidade máxima
de me cruzar com o professor Corino de Andrade que foi
aos Açores, que é o grande cérebro
e um dos mestres fundadores do Instituto de Ciências
Biomédicas Abel Salazar.
Foi um privilégio enorme conviver com ele durante
cerca de 15 dias. Quando terminei ano e meio em Santa
Maria fui cumprimentá-lo. Na altura estava a começar
a ideia do Instituto de Ciências Biomédicas.
E nesse dia ele fez-me um desafio, depois de olhar o trabalho
que eu tinha feito, achava que estaria bem na área
da epidemologia. Então, disse-lhe que talvez fosse
lógico fazer medicina interna, e ao mesmo tempo
a formação na área da epidemologia
e da saúde da comunidade. Foi muito importante
juntar estas duas peças, porque o diálogo
com os quadros clínicos é de iguais, e por
outro lado permite juntar algumas componentes como é
o caso da prevenção, dos problemas da salubridade,
da epidemologia, o que significa depois uma experiência
muito interessante.
U@O - Regressado dos Açores, como foi
o seu percurso?
J.C. - Depois dos Açores fiz o exame para
entrar para as especialidades, depois o internato em medicina
interna, e já nessa altura o Instituto de Ciências
Biomédicas estava a arrancar. Tive oportunidade
de ir um ano para Inglaterra, fiz seis meses na London
School of Higiene, uma das escolas mais fantásticas
desta área no mundo. Os outros seis meses, uma
vez que tinha conseguido uma bolsa do British Council,
passei-os na Universidade de Southampton, onde vi um modelo
inovador no ensino da medicina. Em Inglaterra visitei
mais algumas escolas com modelos inovadores. Basicamente
fui inteirar-me e absorver todos os documentos e ideias
que pudesse trazer depois para cá, que me pudessem
facilitar no desenvolvimento do ensino das biomédicas.
Isto aconteceu entre 1978 e 79.
No regresso fiz o internato, que havia interrompido naquele
ano, e um dia recebi um telefonema do Prof. Aloísio
Coelho perguntando se eu tinha lido um jornal que muito
pouca gente lê, onde havia umas bolsas para os Estados
Unidos. Concorri e ganhei. Em Agosto estava nos Estados
Unidos a fazer o mestrado em saúde comunitária,
mais tarde passou a Master in Public Health, e depois
segui para doutoramento. A Gulbenkian tinha-me dado a
bolsa para mestrado, e voltei a pedir para o doutoramento.
Fiquei quatro anos nos Estados Unidos, nunca trabalhei
tanto na minha vida. Fiz o mestrado e o doutoramento em
dedicação exclusiva, e infelizmente não
é isso que acontece com a maior parte das pessoas.
U@O - Como veio para a UBI?
J.C. - Eu fui designado pelo Instituto de Ciências
Biomédicas para integrar a Comissão de Avaliação
Externa, conhecer a realidade do que se estava aqui a
passar, não só analisar e observar o desenvolvimento
da faculdade como também a própria interacção
com os outros elementos da comissão de acompanhamento.
O que encontrava aqui da parte da equipa da faculdade,
e em especial do sr. Reitor, era uma visão, uma
energia, uma vontade de servir e de construir um modelo
que pudesse ir de encontro aos grandes anseios. Um bom
ensino, alicerçado em bons serviços de saúde,
serviços preocupados com a realidade concreta local.
Esta é a mesma agenda que o instituto de Ciências
biomédicas teve no seu início, em 1978.
Mais tarde, em Lisboa, na apresentação do
Plano Nacional de Saúde, o único reitor
que eu vi a assistir foi o sr. Reitor da UBI, como também
o único presidente de uma Faculdade de Medicina
presente era o prof. João Queiróz. E o mais
inesperadamente possível, tomei conhecimento que
tinha sido aberto um concurso internacional para docente
aqui na Faculdade, com determinado perfil. Entretanto
decidi concorrer ao lugar e cá estou.
U@O - Qual é a sua apreciação,
da UBI e da Faculdade de Ciências da Saúde?
J.C. - O José Calheiros que vinha cá
na comissão de acompanhamento continua a ser tratado
da mesma maneira, agora que é docente na Faculdade
de Ciências da Saúde.
Isso quer dizer que as pessoas continuam com a mesma vontade
e energia, nada mudou. Pelo contrário, se calhar
ainda estão com mais energia, porque estar aqui,
longe do poder, faz com que as coisas sejam muito mais
complicadas, obriga a ser muito mais estratega, e quando
se dá os tiros eles têm de ser certeiros.
Entretanto, a energia da Faculdade que realmente vejo
reforçada, e todo este processo do quarto ano que
é muito complexo, envolvendo três hospitais,
muitos centros de saúde, muitos docentes, é
um desfio enorme. Mas tenho assistido a uma grande vontade,
de resolver as coisas, de participar. Julgo que a palavra
chave aqui é a participação. Ou seja,
desde a definição das estratégias,
dos programas, dos modelos, até à avaliação,
tudo isso é participado. Portanto sinto-me muito
bem.
U@O - Que áreas ensina no curso?
J.C. - Digamos que sou facilitador dos módulos
de medicina preventiva, que existe no terceiro e no quarto
ano, e vou dar também contribuir em epidemologia,
bem como nas outras áreas, sempre que for caso
disso. Um dos aspectos mais aliciantes é a medicina
preventiva poder dar contributos às especialidades
clínicas, ou seja, quando temos um doente de âmbito
geral é importante perceber quais foram os mecanismos
que fizeram com que essa pessoa chegasse infelizmente
a ser um doente, que pode ser sério, mas também
perceber os mecanismos que poderão contribuir para
a prevenção, e vai ser um desafio muito
aliciante trabalhar essa situação com os
meus colegas da área da medicina curativa. Por
outro lado, existem várias correntes que afirmam
uma barreira entre o prevenir e o curar. Eu diria que
há ainda mais barreiras, há entre o prevenir,
o curar e o cuidar. E na nossa perspectiva, estas barreiras
devem ser atenuadas.
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"Estar longe do poder obriga a ser muito mais
estratega"
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U@O - O tratamento de proximidade já não
acontece?
J.C. - Recordo-me no meu primeiro dia de consultas
do que na altura se chamava a caixa, os serviços
médico-sociais, sempre optei por domicílios,
se calhar pela questão da proximidade. Não
tendo sido treinado na Faculdade de Medicina para saber
o que é que se faz nas situações
terminais que se vêem em casa, a minha primeira
intuição foi de internar as pessoas para
terem os cuidados de saúde que precisavam e que
as famílias não tinham condições
para lhes dar em casa. Uma área que me interessa
particularmente é a forma como as famílias
lidam com os problemas que têm em casa, como é
que nos organizamos para podermos ajudar a família
nestes casos, e hoje temos novas situações
como a alzheimer e outras doenças.
U@O - Todas essas questões fazem parte
da área da saúde pública?
J.C. - Devem fazer parte de toda a área
profissional porque a tendência é para que
a profissão seja cada vez mais fragmentada, somos
cada vez mais especialistas em coisas mais pequenas, mas
o ser humano e a sociedade são um todo, e a interacção
entre estas áreas é fundamental.
U@O - Essa é uma formação
que falta hoje em dia?
J.C. - Não se presta muita atenção,
mas eu acho que é fundamental. Nesta faculdade
vai-se contribuir para isso e aliás já está
em movimento, porque não é só o conhecimento
que interessa, mas também outras coisas, embora
o aluno muitas vezes pense que a única coisa que
vale são os conhecimentos. Conhecimentos sem atitudes
são uma jóia muito bonita que não
serve para nada.
U@O - Como descreveria o estado da saúde
pública no nosso país?
J.C. - Os portugueses têm provérbios
muito interessantes, mas que depois têm dificuldade
em aplicar. Mais vale prevenir do que remediar, o que
não mata engorda, o que arde cura, são os
três favoritos.
Por exemplo, em relação aos acidentes de
viação que são um problema muito
grave, Portugal continua a ser uma catástrofe.
Essa é uma situação que me preocupa
muito, isto é, muita gente muito nova que não
tem a mínima preocupação em relação
aos comportamentos civilizados na estrada.
Depois outro problema em termos de saúde pública
a grande tónica é dada nos cuidados curativos.
É muito mais fácil pôr a funcionar
mais um programa de rasteio, e não fazemos nada
em relação a problemas de base, como por
exemplo a epidemia tabágica que vai pelo País
fora. Aqui a Covilhã é um bom exemplo, enquanto
que em alguns sítios já começa a
decrescer, aqui dá-me ideia que está em
crescimento, incluindo dentro das profissões de
saúde médica.
Portanto em termos de saúde pública temos
algumas lacunas que têm muito a ver com comportamentos
e com comportamentos que são aceites socialmente.
É evidente que houve grandes conquistas. As questões
ambientais melhoraram imenso embora ainda haja muito para
fazer, a maioria da população, nomeadamente
das zonas rurais, já dispõe de abastecimento
de água de razoável qualidade, o saneamento
básico também começa a ser uma conquista
na maior parte dos locais, e portanto o progresso é
muito grande. As epidemias principais estão controladas,
embora haja novos problemas como é o caso da sida,
da sida com tuberculose, etc..
A prática da saúde de interesse público
na minha opinião tem de ser muito descentralizada
e específica dos locais onde as comunidades vivem,
com as suas características próprias.
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