O sol ainda mal se
levantou e os pequenos barcos do mar da Figueira da Foz
regressam para a costa, carregados com o peixe que apanharam.
Os homens que trazem os barcos levantaram-se de madrugada.
Ao verem que o mar estava calmo e que a maré era
boa lançaram-se nas águas junto à
costa na esperança de ao voltar trazerem consigo
pescado suficiente para vender na lota. Aqui pescadores
e peixeiras tentam aliciar quem passa dizendo que o pescado
é fresco, de boa qualidade, e que "é
baratinho".
Portugal sempre teve uma forte relação com
o mar. Desde os Descobrimentos que os portugueses enfrentam
as marés e, dada a posição geográfica
do nosso país, muitas das nossas tradições
têm uma influência marítima.
José Maria Santos foi pescador durante toda a sua
vida. Nascido e criado em Buarcos, junto à Figueira
da Foz, vem de uma família pobre e é um
entre sete irmãos. Poucas vezes foi à escola,
não completando assim o ensino primário.
Isto porque a professora o terá repreendido por
ter partido o tinteiro, mas justifica-se dizendo que tal
aconteceu porque um colega de escola estava a brincar
com ele. Nasceu em 1924, e quando foi a primeira vez para
o mar tinha apenas 11 anos. Antes mesmo de se dedicar
a este modo de vida, fora ajudante de pedreiro, mas porque
se ganhava pouco e o patrão não lhe queria
dar aumento, decidiu dedicar-se a esta profissão.
"Nesse tempo, andávamos numas embarcações
que se chamavam joateiros. Íamos ao sol posto para
o mar e voltávamos no outro dia, logo pela manhã."
Depois de pescar ao longo da costa durante cinco anos,
em 1944, José Santos começou a ir para a
pesca da sardinha, em traineiras, umas embarcações
maiores. Mas em 45, teve de ir para a tropa, em Paços
de Arcos. No quartel, não enviavam os homens para
a guerra. Trabalhavam em bombas submarinas. Durante um
ano esteve a cumprir o serviço militar e depois
voltou para a vida do mar, embarcando uma vez mais nas
traineiras.
Foram muitas as paragens
por onde passou o pescador de Buarcos
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“Era uma vida de escravidão”
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De 1947 a 1957, José Maria andou na pesca do bacalhau
e conheceu meio mundo. Naquele tempo, levava-se apenas
linhas e uma bússola. Uma vez chegados ao destino,
como por exemplo a Gronelândia, "cada um procurava
o seu caminho e muitos iam e já não vinham".
Hoje os navios já não vão para lá,
mas na altura a frota portuguesa e a espanhola eram as
maiores. O bacalhau também não é
o mesmo, "não tem o mesmo gosto porque é
logo congelado e só depois é que é
arranjado e salgado". Quando era ele que estava a
pescar o bacalhau, levantava-se por volta das cinco da
manhã e podia acabar a escala à uma ou às
duas da manhã seguinte. Trabalhava-se "quase
um dia inteiro, mal se descansava". A viagem para
a Gronelândia era ela própria um desafio.
Em primeiro lugar iam para Lisboa, viagem que demorava
cerca de 11 horas, dependendo do andamento do navio. Uma
vez chegados, aí permaneciam alguns dias, a pescar
um pouco e a apanhar algum isco. Ao todo, ficavam por
volta de quatro meses longe de casa. No Inverno, era uma
vida muito mais dura, devido "aos temporais e porque
gelava muito". Então, rumavam para a Terra
Nova. Os navios, ao atravessarem o Canal da Mancha, apanhavam
tempestades, mas tudo valia a pena quando se regressava
e se entrava nas águas portuguesas. "Quando
chegávamos a Matosinhos, ver aquela terra e aquele
povo era uma alegria. Para chegar a casa, íamos
de comboio e como éramos uns tantos, por vezes,
comprávamos um garrafão de vinho. Era uma
grande alegria chegar a casa."
"Era uma vida de escravidão. Muitos eram aqueles
que desistiam da vida da pesca do bacalhau. Uma vez agarrei
um bacalhau que teve de ser içado. Era tão
grande. O capitão disse para escalar o bacalhau,
tirar a espinha e parte da cabeça porque aquele
bacalhau ia safar alguém da tropa".
Histórias de
sobrevivência
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Anos a fio no mar deixaram-lhe imensas histórias |
Foram vários os sustos e os acidentes. Um dos
acidentes que teve, mudou a sua vida para sempre. Recorda
que foi em 54 ou 55, escorregou para trás e ao
cair fracturou a coluna. Só foi mais uma vez para
o mar. Dos três naufrágios que viveu, lembra-se
de um em particular, o que ocorreu nessa viagem, depois
do acidente. Enquanto recorda o sucedido, algumas lágrimas
rolam pelo seu rosto marcado pela vida dura que teve.
São sentimentos e vivências que recorda com
muita emoção e que o marcaram profundamente.
"Em Agosto, a vinte e poucos... Já não
me lembro bem da data. Já foi há tanto ano...
Não tinha reacção. Estava mal. O
nosso navio estava a ir para o fundo. O Gil Eanes ainda
nos veio ajudar. Estávamos todos a gritar, a saltar
do navio... Nestas alturas era cada um por si. Ainda morreu
um dos nossos homens..."
Ao regressar a Portugal, recebeu uma carta, informando-o
de que não poderia voltar para a pesca do bacalhau.
Foi então para Lisboa, para a Liga dos Amigos dos
Hospitais, para ser operado à coluna, mas o medo
de ficar "entrevado" fê-lo voltar para
Buarcos. Após ter conversado com o seu médico,
António Vaz, e o cirurgião, António
Ferreira, regressou a casa, mas não conseguia andar
e tinha tantas dores que voltou a Lisboa. Aqui o médico
receitou-lhe uma injecções e as dores foram
diminuindo. Recorda que a medicação vinha
da Alemanha e era muito cara, custava mil escudos a caixa,
o que "para um pobre era duro".
Devido aos problemas de saúde, José Maria
não podia fazer muitos esforços, mas continuou
ligado ao mar e foi para África. Para tal, era
precisa a 4ª classe e por isso teve de voltar a estudar.
Pagava dez escudos por mês e depois de algumas aulas
foi para Coimbra fazer o exame, mas chumbou e teve de
o repetir após mais algumas lições.
"Na escola fizeram um ditado e tive um erro. Fui
fazer o exame, foi o mesmo ditado mas, como tive três
erros, chumbei. Era dos nervos. Por isso é que
quando o meu neto me diz que vai um ter teste, aconselho-o
sempre a ter muita calma, porque quando se está
nervoso não se faz nada de jeito."
José Maria pensou
muitas vezes em abandonar a pesca, "mas o gosto
falou sempre mais alto". |
O gosto pelo mar falava mais alto |
Em Luanda passava grande parte do tempo no mar, a pescar.
Vinha a casa de cinco em cinco dias. Ao sexto dia vendia,
juntamente com outros, o pescado e depois voltava para
o mar. Pescava vários tipos de peixe, como pardo,
cherne, garoupa, carapau, entre outros. Num dia podia
ajudar a puxar duas toneladas de peixe, noutro cinco.
"Eu gostava de lá estar. Era diferente. Quando
estávamos em terra, juntávamo-nos três
ou quatro e íamos beber umas cervejas. Era engraçado
porque à primeira cerveja que se pedia, traziam
um pires com amendoins para cada um. À segunda,
era com carapauzitos. E à terceira era com dobrada.
Pagávamos só as cervejas e enchíamos
também a barriga."
De Luanda, José Maria enviava dois contos para
sua mulher e filho. Voltou para Portugal, em parte porque
enviara o dinheiro, mas a sua família não
o recebera. Chegou a Lisboa num barco que se chamava Amélia
de Mello e foi logo ao banco informar-se sobre o que se
passava. De nada adiantou.
Responderam às suas dúvidas dizendo que
o dinheiro já deveria ter chegado, e que uma vez
que não estava em Lisboa, ou estava no Porto ou
em Coimbra. O pouco dinheiro que enviou até Abril,
só o recebeu passado meses, em Julho. Após
ter estado em África e já por terras portuguesas
voltou à pesca da sardinha. Mas por pouco tempo.
Há 15 anos atrás, no dia 5 de Agosto, teve
uma trombose. Estava um dia de sol, de muito calor, mas
José "batia queixo" de frio. Foi levado
para o centro de saúde, e daqui foi transferido
para o Hospital de Coimbra. Esteve sete dias ligados à
máquina. "Quase que ia, mas, graças
a Deus, recuperei. Hoje a idade também já
conta... Afinal, são 80 Primaveras."
Trocar a pesca pelas
artes
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Hoje ocupa o tempo com os pequenso barcos que faz
em madeira |
A partir desta data, nunca mais pôde voltar para
o mar. Mesmo assim, e porque tinha de ocupar o seu tempo,
começou a dedicar-se a outro tipo de arte. "Quando
me deu a trombose, para me entreter, comecei a fazer barquitos
em madeira. Comecei por fazer uns pequenitos e ao fim
de algum tempo apostei e tratei de fazer uns maiores,
e com mais pormenores. Fiz miniaturas de alguns barcos
em que estive ao longo da vida. Tenho barcos vendidos
para a Alemanha, para a Suécia, na América,
e mesmo cá em Portugal, vendi vários”,
explica o, agora, artesão. Um dos seus mais interessantes
trabalhos foi vendido por 250 euros, “para um café
em Castelo Branco, media mais de um metro”. Na altura,
estava a precisar.
"Fiz tudo pela vida. Tenho a minha casita e as coisas
houve alturas em que corriam melhores do que noutras.
Comprei, juntamente com o meu irmão, um barco que
me ajudou a ganhar muito dinheiro. Custou-nos mil e 800
euros, e ao fim de alguns anos vendemo-lo para o Algarve
por quatro mil”, recorda. Iam para o mar por volta
das quatro, mais tardar cinco da manhã, quando
o tempo estava bom. Por volta do meio-dia voltavam, e
se tivessem quantidades suficientes de peixe iam para
a lota vendê-lo, senão, levavam-no para casa,
o que também "dava jeito". Às
vezes, "fugia-se ao fisco" para ganhar mais
algum.
Uma
das queixas feitas pelo pescador é
o pouco dinheiro que ganham na venda do
peixe
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“ Não é o pescador que
ganha muito, mas sim quem revende o peixe” |
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"O mar, quando é bom, é
uma vida linda, linda, linda... Aquele cheiro,
ver o peixe a saltar... Mas quando atiça
as barbas, é de tremer... A vida
de pescador é difícil, não
se ganha muito”, explica José
Santos. Para este homem do mar, “não
é o pescador que ganha muito, mas
sim, quem revende o peixe”. Nos tempos
que correm, nas zonas costeiras, pequenas
embarcações continuam a sair
das praias antes do sol se levantar, regressando
a meio da manhã para vender o pescado.
No Inverno, vários são os
dias em que não podem ir para o mar
devido ao mau tempo e às fortes correntes.
Há também que ter em conta
que há marés melhores do que
outras, o que está relacionado com
as fases da lua. Assim, as marés
de lua cheia e de lua nova são as
melhores, e nestas ou a maré sobe
ou desce muito, deixando descobertos os
rochedos e permitindo, por exemplo, a pesca
do mexilhão ou do camarão,
entre outros. Muitos são os jovens
que mantêm estas tradições,
não tanto como forma de sustento,
mas
sim como passatempo. No mar alto, as inovações
tecnológicas proporcionam hoje mais
e melhores condições. No entanto,
as tempestades e as saudades da família
continuam a ser uma realidade com a qual
todos os pescadores têm de lidar.
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