Anabela Gradim
|
O armazém
Acabaram as aulas na generalidade dos níveis de ensino, e
já só alguns estudantes ultimam os seus exames. Há
uns anos este período era conhecido, muito apropriadamente,
como «férias grandes», e era vivido como um tempo
de ócio, de descanso e descoberta que, pelo menos no meu caso,
ficou indelevelmente marcado por livros, muitos, muitos mais livros
que aqueles que na escola eram, sempre a contra-gosto, impostos.
E o que sucede hoje é que, muito por via das alterações
entretanto produzidas na vida das famílias, as férias
«grandes» estão a desaparecer. Os pais que já
não têm tempo para estar com as suas crianças
desejam sobretudo que a escola possa acolhê-los o máximo
de tempo possível, entretendo-os em actividades
para-curriculares. Idealmente, só deveria parar em Agosto, e
mesmo assim, para muitos, até este mês poderia ser
opcional.
Não é meu propósito culpabilizar as famílias,
porque são válidos muitos dos seus motivos, mas tão
só chamar a atenção para o facto de que estão
a roubar às crianças as «férias grandes»,
com consequências não tão positivas assim. Se
estas passarem 11 meses nas instalações escolares, em
Outubro (e agora recuou para Setembro em vista do encurtamento das
férias de que falo) os miúdos não vão
estar com saudades da escola, ansiosos e expectantes com o novo ano
que se avizinha, mas fartos, fartos até aos olhos dos lugares,
das pessoas e das actividades que lhes propõem. Claro que a
escola hoje já não serve só à transmissão
do saber, desempenha igualmente uma função social que é
complementar ao papel das famílias, mas o que não pode
é transformar-se num armazém, embora de matérias
preciosas.
É um facto que as novas gerações de miúdos
já não vão ter férias grandes,
semelhantes às dos que os antecederam. Que não vão
poder usar esse tempo no registo da pura liberdade individual. Que
este tenderá sempre cada vez mais a estar organizado em
actividades programadas e mais ou menos impostas. E com isso perderão
tardes de preguiça ao sol, o prazer de descobrir um livro, a
saída imprevista, fazer bolos ou compotas na própria
cozinha (no «Clube de Culinária» já não
é a mesma coisa). Com outra agravante ainda: também os
professores e educadores acabam ficando fartos do armazém e
dos armazenados.
Por isso agora que as férias estão à porta pode
ser altura de redescobrir essa magia de quando ainda eram
«grandes»,
Outubro parecia algo de infinitamente distante, e quase julgávamos
que não teriam fim.
E, ligado a isto, não, o facto triste da semana não são
as agruras do futebol, nem os sucessos do governo e os impasses da
presidência. Esta semana o mais importante de tudo foi o
desaparecimento de Sophia de Mello Breyner, tão discretamente
noticiado não por respeito à dor da família
(algo que se recomendaria), mas porque as prioridades da agenda
mediática são insondáveis, misteriosas e
incompreensíveis. Sophia era a maior poetisa portuguesa viva,
e para os entendidos, até bem mais que isso. Ora uma dimensão
muito importante na sua obra são os livros absolutamente
maravilhosos que escreveu para crianças: A Menina do Mar,
A fada Oriana, A Floresta, O Rapaz de Bronze, O
Cavaleiro da Dinamarca, entre outros. Nenhum miúdo que
pelos seis anos tenha chegado, por sua mão, ao prazer mais
alto que um livro pode oferecer, será alguma vez o mesmo. E
nunca poderá agradecer suficientemente essa dádiva.
Lembrem-se disso, agora que são férias grandes, os
miúdos estão fechados em casa, e os pais desesperam sem
saber que lhes dar.
|
|
|