São 10 horas
da manhã e o tear instalado no fundo do enorme
salão da firma Pereira Ramos é travado abruptamente.
A canela não partiu nem a trama de tecido está
mal colocada, a paragem do matraquear do pente deve-se
a um agente da Guarda Nacional Republicana.
"Acompanhe-me, está preso", foram as
secas palavras que Apolinário Proença ouviu,
faltavam três dias para o Natal. Corre o ano 1963
e para o velho posto da GNR do Tortosendo, no bairro dos
Pinhos Mansos, segue a passos largos um homem que há
muito espera este desfecho. Aos 34 anos, Apolinário
Proença troca o seu nome por "António",
pseudónimo inscrito na ficha de militante do Partido
Comunista Português. Vai para dois meses que quatro
camaradas "de entre mais de duzentos só no
Tortosendo", foram detidos. Numa última tentativa,
dias antes, o irmão do pseudónimo "António"
ainda lhe pôs 12 mil escudos nas mãos para
rumar a terras de França.
Homem de ideias firmes e convicções inabaláveis.
Pela liberdade "lutei e fiz de tudo", não
era assim "que ia voltar as costas ". Decidiu
ficar, um arrojo que lhe vai custar três anos de
prisão, "de martírio e tortura".
Chegou a sentir forte arrependimento de não ter
partido enquanto pôde, "mas as coisas são
como são e não se pode voltar a trás
quando bem entendemos". São já seis
da tarde, daquele 22 de Dezembro de 1963. Apolinário,
que a partir daqui será tratado por "António",
segue para Lisboa com mais um camarada. As casas do Tortosendo,
a fábrica e o passar de mãos pelos teares
só voltarão a acontecer passados três
anos.
Chegam à sede da PIDE/DGS pelas três da manhã.
A viagem até à António Maria Cardoso
foi tão tumultuosa quando o processo de identificação.
Várias horas de interrogatórios e a célebre
tortura da "estátua". Coisas que "levavam
um homem à loucura". "António"
recorda bem as "horas infinitas que passou a olhar
para a parede de reboco caído com os braços
erguidos e sem fazer mais nada". Lembra também
o desalento sentido quando "por entre as frestas
da parede que dividia as salas de interrogatório"
ouviu um camarada "desembuchar tudo". A lista
com nomes e respectivos pseudónimos foi então
terminada.
Pertencente ao Comité Central do PCP, partido ainda
na clandestinidade, Apolinário Proença acaba
os 54 primeiros dias de cadeia, passados no Aljube, com
um interrogatório de dois dias. A PIDE "mostrou-me
toda a lista de simpatizantes, funcionários e gente
ligada ao partido". A sua extensão era tal
"que me chegaram a explicar que só não
vieram prender aquela gente toda ao Tortosendo porque
as fábricas paravam". E era nas fábricas
onde o regime fascista ia ganhado buracos, onde "a
cadeira do poder onde estava sentado Salazar ia ganhado
bicho". O julgamento de Apolinário e de outros
cinco conterrâneos deu-se no Porto. José
César Paulouro das Neves, então advogado
estagiário conseguiu-lhes uma pena mínima
de três anos. Ao trânsito em julgado da sentença,
tecelões e pedreiros seguiram para o Forte de Peniche.
No bairro de Santa Catarina, a pequena casa de porta vermelha
tem na sua entrada um par de vasos. Cravos vermelhos assinalam
a moradia de "António". Uma casa talvez
abençoada pela toponímia bairrista, até
porque "sempre a tive repleta de jornais Avante".
O operariado "era catequizado e instruído
por esta publicação e por outro tipo de
livros". Tudo servia para "combater o regime".
A visão de Apolinário
Proença sobre o país do pós
25 de Abril é positiva
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Palavras que também servem a António Pinto
Simões da Cunha. Este homem que agora percorre
as ruelas da zona histórica da Covilhã,
a caminho de casa, também combateu o regime. O
emaranhado de ruelas é "como as passagens
da minha vida". A comparação literária
ganha relevo estilístico no écran, mas quando
contada, recordada na primeira pessoa "vê-se
que não é assim tão fácil".
O guarda-livros da Casa Sousa, uma loja de ferragens e
materiais de construção é um dos
elementos mais perseguidos pela PIDE/DGS na zona da Covilhã.
Trinta anos volvidos sobre o 25 de Abril de 1974, Simões
da Cunha foi descobrir na Torre do Tombo "coisas
da minha vida que já não recodava".
O seu processo, que agora folheia com cuidado maternal
e de lágrima no olho "tem mais de 500 folhas".
De tudo um pouco se pode descobrir. Desde a matrícula
e cor do velhinho Fiat 127, até às deslocações
fora da cidade que Simões da Cunha, por motivos
pessoais ou profissionais fazia. A tudo isto, juntam-se
também os vários processos de detenção
e julgamento.
"Fui fazer as minhas 25 primaveras a um dos grandes
hotéis salazaristas", começa por dizer.
O jovem António, filho de militar destacado no
quartel da Covilhã, "a quem nunca faltou nada,
dentro das possibilidades e do regime", desponta
cedo para as lutas políticas, para a oposição
ao fascismo. Sua mente "não gostava de ver
passar necessidades e injustiças a ninguém".
Ideais partilhados pela maioria da juventude da sua época.
No entanto, Simões da Cunha, decide partir para
a acção. Com capacidade e espírito
empreendedor, "a luta travada na clandestinidade"
ganhava alento. António Cunha abre um sorriso por
entre a melancolia e a tristeza das recordações
para dizer que lhe agradava "agitar as águas".
Um dos mais perseguidos de toda a Beira Baixa, Simões
da Cunha foi também dos que deu "mais bofetadas
em todo o regime pidesco".
Golpes que lhe custaram um ano de cadeia. A 21 de Junho
de 1959, quando um actual agente da Polícia de
Segurança Pública da Covilhã sobre
a escada da Casa Sousa em direcção ao escritório
do guarda-livros, Simões da Cunha conhecia o motivo.
O caminho entre a Rua Direita e a esquadra da PSP, "foi
como sempre, percorrido com algum tormento interior".
Ainda esse dia vai dormir à sede de Coimbra, da
polícia política. Voltaria à Covilhã
um ano depois, mas também "um homem diferente".
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António Simões da Cunha, ex-preso
político, sublinha a importância da
Revolução dos Cravos
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Percorre-se agora a estrada de Peniche. No velho forte,
encarcerados grande parte dos cabecilhas da oposição.
Num tempo, "em que é bom frisar o facto de
não existirem partidos políticos",
as pessoas "uniam-se mais em torno de uma causa",
fala José António Pinho. O companheiro de
prisão de Simões da Cunha sublinha mesmo
"o grande movimento de unidade que hoje não
existe".
Impelidos pela visita de Humberto Delgado, o General sem
medo, e por toda uma série de lutas como os jantares
do 5 de Outubro, "o grande grupo de jovens católicos
progressistas combatia, diariamente, o regime". Hoje
empresário, José Pinho é, como os
outros dois presos políticos, incriminado por "distribuir
propaganda política" e outros documentos contra
o regime. A funcionar "A Bem da Nação",
a PIDE/DGS aponta o jornal Avante, livros sobre a fome
e a repressão e inclusivamente, "a célebre
carta de D. António, bispo do Porto", como
escritos contra o Estado Novo.
Logo após a passagem pelas sedes da DGS, os detidos
tinham como destino, os fortes de Peniche e Caxias. Prisões,
"onde os presos de delito comum eram melhor tratados
que os presos políticos", explica Simões
da Cunha. Agora aposentado e ao redor dos livros, um dos
seus passatempos preferidos, lembra que "as escolas
daquela altura eram as prisões". No meio de
toda uma situação "infra-humana",
exista sempre "alguma coisa boa". Os grandes
alentos que Simões da Cunha trouxe da cadeia foram
os "maiores conhecimentos filantrópicos e
o avolumar da luta pela liberdade".
Preocupações que estiveram na linha da frente
desde 1960 a 1972. Doze anos em que Simões da Cunha
encabeçou o movimento de angariação
de fundos para os pobres. Um movimento em torno do jornal
República. Lembra que "até as listas
de dadores eram vistas e revistas pelos agentes da PIDE".
A luta titânica contra o salazarismo ainda o ia
levar ao Hospital da Covilhã, depois de brutalmente
espancado pelos agentes da polícia política.
Passagens que fazem parte da memória de Simões
da Cunha "e que nunca mais esquecem".
José Pinho conta com maior número de detenções.
Com 64 anos de idade confessa que "naquela altura
o nosso pensar era diferente". Este homem que chegou
a ser candidato pelo Movimento Democrático Português
(MDP), no ano de 1973, sublinha que "quando se tem
19 anos, pensa-se de forma diferente".
Pouco depois de ser libertado da sua primeira "estadia
nos liceus da PIDE", é novamente detido. Dos
tempos de prisão lembra o forte humanismo vivido
dentro das celas e também a vontade interior de
continuar a lutar. Ingressa no Exército e é
aos comandos de uma companhia situada em Penamacor que
vai assistir à "insurreição
pacífica" de 200 homens. Decorria o ano de
1967 e José Pinho carregava há sete escassos
meses a aliança que o uniu à sua esposa.
"Nunca esperei que aqui fosse acontecer", adianta.
Numa manhã como tantas outras, a companhia liderada
por Pinho, "onde estava um grande número de
jovens revolucionários" apresenta-se em formatura
na parada do quartel. À ordem do oficial de dia,
para destroçar, nenhum homem se mexe. Os ânimos
exaltam-se e só à voz do cabo Pinho o pelotão
voltou ao seu trabalho. O episódio correu os quartéis
de Norte a Sul do País e José Pinho é
enviado para a prisão militar de Évora.
A vida, cá fora, depois da saída "era
sempre de pressão e constante terror", lembra
Apolinário Proença. Aos 75 anos de idade,
puxa frequentemente do cigarro para, entre as baforadas
de fumo, recordar as noites passadas em claro. "Não
era fácil viver nestas condições,
sempre com o coração apertado por alguma
coisa", avança. Os patrões, "ainda
iam ajudando", afirma Simões da Cunha. Quando
regressou da prisão, dos interrogatórios,
de todas as torturas físicas e psicológicas,
o seu lugar "lá estava à espera".
Também porque "todos alimentávamos
a esperança de que isto um dia ia mudar".
José Pinho assistiu
à revolta de 200 militares em Penamacor |
"O sol brilhou diferente esse dia" |
No meio de tanta pancada, de tamanho espezinhar da alma
falta falar no mais difícil. Não que nestas
situações ou em semelhantes seja vergonha,
"mas para um homem chorar é preciso muito".
As palavras vêm da boca de "António",
o pseudónimo de Apolinário Proença.
A meio de uma semana de Abril, de um ano como os outros,
a rádio do autocarro que levava Apolinário
ao trabalho estava, "surpreendentemente" calada.
Todo um silêncio que intrigou o operário.
"Quando entrei na fábrica, eram umas seis
e pouco da manhã, a primeira coisa que fiz foi
contar a um companheiro meu o que acabava de suceder".
Passado algum tempo começam a juntar-se outros
operários, "mas havia algo no meu coração
a dizer-me que se passava qualquer coisa no País".
Decorria desde a meia-noite um golpe militar. As máquinas
já não trabalharam, "os operários
da Sociedade de Fabricantes, a maior naquela altura, começaram
a correr todas as outras fábricas e fomos todos
para o centro da vila". A inundação
de alegria ainda hoje faz estragos no peito de Apolinário.
Deixa o cigarro e meio e puxa do lenço branco de
pano para enxugar as lágrimas. Aquela voz que ainda
há segundos cantava trechos de "Grândola.
Vila Morena" e "Os Vampiros", enrola-se
agora para só conseguir dizer que "o sol brilhou
diferente esse dia".
Essa mesma diferença, em jeito milagroso, percorreu
Portugal. Na Covilhã, o Pelourinho "estava
a abarrotar de gente". A tomada da Câmara Municipal,
"o poder gritar liberdade", e a simples conversa
entre a multidão, deram a Simões da Cunha
"uma alegria só igualável ao nascimento
de um filho". Todos estes homens que contribuíram
para a liberdade, "sentiram nesse dia algo indescritível".
Ainda hoje, ao rever na televisão e nos jornais
as imagens da libertação dos presos políticos
António Simões da Cunha chora "a bom
chorar". A emoção dos dias vividos
numa revolução que conduziu Portugal, trinta
anos depois, "a um País muito melhor".
O futuro construído todos os dias |
Para estes homens, a revolução faz
parte da sua natureza |
Falar de Abril é "falar de tudo o que é
Portugal". Se bem que José Pinho gostasse que
as escolas, os hospitais, as estradas, "aparecessem
mais na televisão". Num Estado "onde não
se investe na cultura dos homens, onde a participação
cívica se resume ao mínimo", o espírito
de Abril "tende a perder-se, ou melhor, a perverter-se",
diagnostica Apolinário Proença. O "futuro
a Deus pertence, mas julgo que será muito melhor
do que aquele que o Estado Novo nos reservava", conclui
José Pinho.
Ser revolucionário "é também verificar
que os jornais, as televisões, a economia, a política,
e sobretudo a mentalidade social estão cada vez piores".
Este homem que acredita sempre na democracia e na liberdade
de expressão, que usava o pseudónimo de "António",
lembra que "temos de lutar sempre para melhorar o que
é nosso, numa força mútua conseguida
através da cultura".
A alegria excêntrica de Simões da Cunha volta
todos os anos por esta altura. Abril deve ser "mais
recordado". Um dos principais problemas para este preso
político e revolucionário reside no facto
de "muitas vezes não se transmitir a verdadeira
importância desta data". |