"Ponha na conta".
No comércio tradicional da Covilhã este
pedido nunca deixou de ser feito. Mas a venda a fiado,
devido à crise de que se fala e ao desemprego,
parece estar novamente a ganhar expressão, embora
muitos comerciantes, por causa dos "calotes"
que não chegam a ser pagos, tenham abolido esse
sistema definitivamente ou só emprestem a clientes
antigos e "certos nas contas".
As pequenas lojas, sobretudo as que vendem mercearias,
são aquelas a que mais se recorre quando não
se tem dinheiro para comprar a pronto. Mas a compra a
fiado estende-se a muitos outros ramos.
Filomena Carrola, empregada de balcão de uma mercearia,
diz que vende fiado porque tem pena das pessoas e "para
facilitar as que dizem que não têm dinheiro".
Mas é também uma forma de manter os clientes
e tentar vender. "Se nós não emprestarmos
há outros que emprestam. E nós vamos tentando,
para vender alguma coisa, na mira de se receber",
diz. Filomena Carrola entende que desde que a pessoa cumpra,
tudo bem. "O pior é quando chega ao fim do
mês e não pagam. Uns fazem umas entregas
para amortizar, outros nem vêm cá e só
depois quando voltam a precisar é que aparecem
para lhes fiarmos outra vez e prometem que pagam no fim
do mês", conta.
A dever desde o tempo do escudo
Muitas das somas em dívida estão ainda
em escudos e algumas ascendem aos cem contos. E, pela
experiência, está já consciencializada
que a loja não vai nunca chegar a ver a cor de
algum desse dinheiro. As compras são quase sempre
de mercearia. "Vão levando pouco a pouco,
porque não fazem essa quantia num dia. No fim do
mês entregam algum, mas levam mais qualquer coisa.
Por isso a conta vai subindo e é assim que se fazem
as grandes contas", explica Filomena Carrola. E ascrescenta:
"Quando se tornam muito grandes e já não
as conseguem saldar vão a outros lados".
Com um ar meio resignado, meio desiludido, a empregada
de balcão da Casa Lili observa que nestas situações
acaba por se perder o dinheiro e também o cliente.
"Nós pedimos para pagarem e eles deixam de
vir. Outros vão vindo, vão entregando algum,
vão levando mais. Há de tudo", sublinha.
No entanto, para Filomena Carrola, por vezes o problema
está na falta de organização, "porque
uma pessoa que quer pagar vai sempre entregando qualquer
coisa, se tiver vontade", salienta.
Tendência aumenta
Segundo Filomena Carrola a venda a fiado nunca deixou
de ser uma realidade, mas nota que a situação
se acentuou nos últimos tempos.
Na opinião de Jerónimo Serrão, proprietário
de uma mercearia em Santa Maria, essa tendência
deve-se ao menor poder de compra que as pessoas têm
hoje em dia e ao aumento do desemprego. Mas acrescenta
que a situação dos comerciantes não
lhes permite ter produtos em stock, por isso pôs
um travão na venda a fiado. "Nós temos
que pagar a pronto pagamento e não podemos estar
a vender fiado", sublinha. Por outro lado, Jerónimo
Serrão considera que "antes havia uma dedicação
à loja e da loja ao cliente" e entende que
essa solidariedade já não é recíproca.
Actualmente fia apenas a um grupo restrito de clientes
já antigos e que conhece bem.
Quando se entra na loja de António Cerdeira, há
50 anos no ramo, vê-se a placa com o aviso "Vendas
só a dinheiro". Está ali há
12 anos, desde que acabou com o sistema que lhe dava aborrecimentos
e fazia perder dinheiro. "Aqui já ninguém
me pede, porque sabem que não fio. Agora sei que
tenho na loja o produto ou o dinheiro, e não fico
sem um e outro", frisa. "Não tinha outra
hipótese, se não tivesse optado por isso
já tinha falido", desabafa António
Cerdeira.
Para Miguel Bernardo, vice-presidente da Associação
Empresarial dos Concelhos da Covilhã, Belmonte
e Penamacor (AECCBP), a venda a crédito "tem
que ser um argumento importante das vendas", mas
considera que devem ser estabelecidas "regras de
controlo de crédito". "Se o comerciante
tende a cair no exagero de deixar arrastar a dívida
durante meses, ele está a cair num erro económico,
porque é ele quem vai pagar", alerta. Segundo
Miguel Bernardo, "atrás do balcão o
comerciante está a exercer uma actividade da qual
vive e tem que fazer esse controlo, sob pena de um dia
destes ter também que andar a pedir para continuar
a sua actividade, já que lhe vão exigir
o pagamento das facturas dele".
Ameaça dos hipermercados
No entender do vice-presidente da Associação
Empresarial, este sistema de vendas reflecte a função
social do comércio tradicional, para além
da função económica. “O problema
é, por vezes, misturar estas lógicas numa
actividade que deve ser essencialmente empresarial, com
um princípio económico”, alerta.
“Antes os lanifícios empregavam muita gente,
pagavam bem e as pessoas, no fim do mês, vinham
pagar. Agora os lanifícios quase não existem.
Para além disso, as pessoas quando têm dinheiro
vão aos hipermercados”, refere Felício
Marques, que actualmente tem um pequeno supermercado a
funcionar em regime de franchising com uma grande superfície
da região. De resto, esta é uma queixa comum
a todos os comerciantes.
Para Miguel Bernardo trata-se de uma questão de
respeito, porque, sublinha, ninguém vai ao hipermercado
dizer que está desempregado e pedir para lhe fiarem
até vir o subsídio. “Depois, quando
recebem tudo junto, não resistem à tentação
de ir comprar a outro sítio a dinheiro”,
salienta. E acrescenta: “Em alturas de crise é
o comércio tradicional a pagar. Quando há
problemas, quando há desemprego, quando se está
três ou quatro meses à espera de receber
o subsídio que demora a chegar, as famílias
mais carenciadas recorrem é ao crédito dos
estabelecimentos da dona Maria ou do senhor José”.
E continua: “E isto com mais incidência nos
meios rurais e nas estruturas comerciais, onde não
se tem coragem para dizer não a quem se sabe que
está a passar necessidades”.
Segundo Miguel Bernardo é importante haver uma
relação honesta entre as partes e os clientes
saberem reconhecer esse gesto de quem empresta quando
as coisas correm melhor. Até mesmo porque, sublinha,
“os hipermercados não conhecem ninguém
que esteja com dificuldades”. “Ou têm
dinheiro para pagar logo ou devem pedir ajuda através
de outros meios”, frisa.
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