Ana Ribeiro Rodrigues
NC / Urbi et Orbi


A prática do "aponte na conta" tem vindo a ser cada vez mais solicitada pelos clientes numa época de crise económica

"Ponha na conta". No comércio tradicional da Covilhã este pedido nunca deixou de ser feito. Mas a venda a fiado, devido à crise de que se fala e ao desemprego, parece estar novamente a ganhar expressão, embora muitos comerciantes, por causa dos "calotes" que não chegam a ser pagos, tenham abolido esse sistema definitivamente ou só emprestem a clientes antigos e "certos nas contas".
As pequenas lojas, sobretudo as que vendem mercearias, são aquelas a que mais se recorre quando não se tem dinheiro para comprar a pronto. Mas a compra a fiado estende-se a muitos outros ramos.
Filomena Carrola, empregada de balcão de uma mercearia, diz que vende fiado porque tem pena das pessoas e "para facilitar as que dizem que não têm dinheiro". Mas é também uma forma de manter os clientes e tentar vender. "Se nós não emprestarmos há outros que emprestam. E nós vamos tentando, para vender alguma coisa, na mira de se receber", diz. Filomena Carrola entende que desde que a pessoa cumpra, tudo bem. "O pior é quando chega ao fim do mês e não pagam. Uns fazem umas entregas para amortizar, outros nem vêm cá e só depois quando voltam a precisar é que aparecem para lhes fiarmos outra vez e prometem que pagam no fim do mês", conta.

A dever desde o tempo do escudo

Muitas das somas em dívida estão ainda em escudos e algumas ascendem aos cem contos. E, pela experiência, está já consciencializada que a loja não vai nunca chegar a ver a cor de algum desse dinheiro. As compras são quase sempre de mercearia. "Vão levando pouco a pouco, porque não fazem essa quantia num dia. No fim do mês entregam algum, mas levam mais qualquer coisa. Por isso a conta vai subindo e é assim que se fazem as grandes contas", explica Filomena Carrola. E ascrescenta: "Quando se tornam muito grandes e já não as conseguem saldar vão a outros lados".
Com um ar meio resignado, meio desiludido, a empregada de balcão da Casa Lili observa que nestas situações acaba por se perder o dinheiro e também o cliente. "Nós pedimos para pagarem e eles deixam de vir. Outros vão vindo, vão entregando algum, vão levando mais. Há de tudo", sublinha. No entanto, para Filomena Carrola, por vezes o problema está na falta de organização, "porque uma pessoa que quer pagar vai sempre entregando qualquer coisa, se tiver vontade", salienta.

Tendência aumenta

Segundo Filomena Carrola a venda a fiado nunca deixou de ser uma realidade, mas nota que a situação se acentuou nos últimos tempos.
Na opinião de Jerónimo Serrão, proprietário de uma mercearia em Santa Maria, essa tendência deve-se ao menor poder de compra que as pessoas têm hoje em dia e ao aumento do desemprego. Mas acrescenta que a situação dos comerciantes não lhes permite ter produtos em stock, por isso pôs um travão na venda a fiado. "Nós temos que pagar a pronto pagamento e não podemos estar a vender fiado", sublinha. Por outro lado, Jerónimo Serrão considera que "antes havia uma dedicação à loja e da loja ao cliente" e entende que essa solidariedade já não é recíproca. Actualmente fia apenas a um grupo restrito de clientes já antigos e que conhece bem.
Quando se entra na loja de António Cerdeira, há 50 anos no ramo, vê-se a placa com o aviso "Vendas só a dinheiro". Está ali há 12 anos, desde que acabou com o sistema que lhe dava aborrecimentos e fazia perder dinheiro. "Aqui já ninguém me pede, porque sabem que não fio. Agora sei que tenho na loja o produto ou o dinheiro, e não fico sem um e outro", frisa. "Não tinha outra hipótese, se não tivesse optado por isso já tinha falido", desabafa António Cerdeira.
Para Miguel Bernardo, vice-presidente da Associação Empresarial dos Concelhos da Covilhã, Belmonte e Penamacor (AECCBP), a venda a crédito "tem que ser um argumento importante das vendas", mas considera que devem ser estabelecidas "regras de controlo de crédito". "Se o comerciante tende a cair no exagero de deixar arrastar a dívida durante meses, ele está a cair num erro económico, porque é ele quem vai pagar", alerta. Segundo Miguel Bernardo, "atrás do balcão o comerciante está a exercer uma actividade da qual vive e tem que fazer esse controlo, sob pena de um dia destes ter também que andar a pedir para continuar a sua actividade, já que lhe vão exigir o pagamento das facturas dele".

Ameaça dos hipermercados

No entender do vice-presidente da Associação Empresarial, este sistema de vendas reflecte a função social do comércio tradicional, para além da função económica. “O problema é, por vezes, misturar estas lógicas numa actividade que deve ser essencialmente empresarial, com um princípio económico”, alerta.
“Antes os lanifícios empregavam muita gente, pagavam bem e as pessoas, no fim do mês, vinham pagar. Agora os lanifícios quase não existem. Para além disso, as pessoas quando têm dinheiro vão aos hipermercados”, refere Felício Marques, que actualmente tem um pequeno supermercado a funcionar em regime de franchising com uma grande superfície da região. De resto, esta é uma queixa comum a todos os comerciantes.
Para Miguel Bernardo trata-se de uma questão de respeito, porque, sublinha, ninguém vai ao hipermercado dizer que está desempregado e pedir para lhe fiarem até vir o subsídio. “Depois, quando recebem tudo junto, não resistem à tentação de ir comprar a outro sítio a dinheiro”, salienta. E acrescenta: “Em alturas de crise é o comércio tradicional a pagar. Quando há problemas, quando há desemprego, quando se está três ou quatro meses à espera de receber o subsídio que demora a chegar, as famílias mais carenciadas recorrem é ao crédito dos estabelecimentos da dona Maria ou do senhor José”. E continua: “E isto com mais incidência nos meios rurais e nas estruturas comerciais, onde não se tem coragem para dizer não a quem se sabe que está a passar necessidades”.
Segundo Miguel Bernardo é importante haver uma relação honesta entre as partes e os clientes saberem reconhecer esse gesto de quem empresta quando as coisas correm melhor. Até mesmo porque, sublinha, “os hipermercados não conhecem ninguém que esteja com dificuldades”. “Ou têm dinheiro para pagar logo ou devem pedir ajuda através de outros meios”, frisa.