Anabela Gradim
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Dar o que
se tem
Dois mil e três não foi ano que tenha corrido
bem ao mundo. Nem há, à porta do novo milénio,
grandes razões para sorrir. O ano ficou marcado
pela invasão, à revelia das Nações
Unidas, do Iraque. No terreno lavra uma guerrilha que,
se não é espaventosa, quase todos os dias
conta, infelizmente, mortos – os quais somados fazem
empalidecer os números registados no Vietname.
A teoria do «dominó democrático»
que iria varrer o Médio Oriente parece hoje uma
anedota. Para piorar tudo, as armas, as ditas armas, teimam
em não aparecer. As imagens de Saddam-acossado-tipo-bicho
podem muito bem ser interpretadas, dependendo do ponto
de vista, no registo da hagiografia e do martírio.
E, sendo uma coisa boa a sua captura, aquelas imagens
ao primeiro impacto ainda não racionalizado, para
quem não tenha o coração cheio de
ódio, produzem simplesmente pena. Só depois
se pode pensar no acontecimento como algo bom. E isso
são más notícias para a luta contra
o terrorismo. Enfim, nenhum dos conflitos em curso na
terra deu sinais de abrandar. A par disso, em Portugal
a recessão e o aumento do desemprego, nos outros
países o difícil arranque económico,
não são de molde a trazer às vidas
de cada um motivos de tranquilidade ou alegria.
Por isso este Natal de um ano que se despede sem deixar
saudades deveria ser um tempo de pausa, para apreciar,
pesar e racionalizar os eventos que passaram. E, também,
para projectar os do futuro, com esperança de que
alguma coisa melhore, pois bem precisamos. Ora não
deixa de ser bom sinal o pragmatismo com que os portugueses,
de carteira meio vazia e futuro incerto, se acotovelam
nos centros comerciais em busca do presente perfeito;
suportam estoicamente engarrafamentos de horas nos seus
poucos tempos livres; sofrem horrores para estacionar
nas zonas comerciais, e ainda pior para delas sairem;
se atarefam – as mulheres – horas infinitas
nas cozinhas a preparar as iguarias da noite de consoada.
Por que o fazem? A resposta é: para os outros.
Há certamente um lado de «potlach»
em todo este frenesim natalício. De ostentação
e perda, dissipação e esbanjamento. Mas
há também um outro muitíssimo mais
fundamental, que coincide com o mistério da gruta
em Belém, e que é de dádiva. De cuidado
e amor por terceiros. Só há uma forma de
demonstrar amor pelos outros, que é doando: coisas,
atenções, sentimentos, vidas inteiras. E
também presentes, e as muitas horas perdidas para
que todos, na consoada, se pudessem reunir de forma apropriada
e de acordo com o ritual à volta de uma mesa. Só
pode dar-se, evidentemente, do que se tem. E se muitas
vezes isso parece resumir-se a formas de pura exterioridade,
não deixam de ser o mesmo gesto, exactamente o
mesmo, do Messias que embora tivesse dúvidas deu
a vida para salvar a humanidade. Deu o que tinha, reza
a história. E não deixa de ser um sinal
de esperança que tantos, mas tantos, amanhã
repitam o mesmo.
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