António Fidalgo

Leis e poderes


Não foi ainda desta vez que a União Europeia adoptou uma constituição. A causa do malogro deveu-se, segundo as notícias e as análises, à luta pela partilha de peso na distribuição dos votos pelos diferentes países. Espanha e Polónia não abdicaram do que haviam conseguido em Nice. Não houve acordo e não houve constituição.
Seja o malogro havido ocasião para reflectir um pouco sobre as leis e os poderes. É que se joga aqui, pelo menos em parte, o dilema do ovo e da galinha. Os poderes, se não forem discricionários, devem ser regulados pelas leis; mas estas não surgem do nada, são feitas e impostas, e para isso tem de haver um poder para as fazer e as fazer valer. Por outro lado, tal como há diversidade de poderes, assim também há diversidade de leis, e o que pode valer aqui pode não valer aqui, e aquele que tem aqui todo o poder, pode ali não ter qualquer espécie de poder.
Feitas estas considerações triviais, de validade muito genérica, convém descer a patamares mais concretos que mexem com a nossa vida no dia a dia. Todos temos normas e regulamentos para cumprir. Vejamos aqueles casos em que somos nós próprios a estabelecer as regras pelas quais nos passaremos a reger, nomeadamente quando se trata de órgãos colectivos. Com efeito, todas as assembleias, todas as associações, todas as colectividades têm de adoptar normas, regulamentos ou regimentos. Obviamente que quem estabelece essas normas são os membros desses colectivos, que podem vir a criar novas normas e revogar normas antigas. Parece que aqui vinga sempre o princípio da maioria, que as normas serão estabelecidas segundo a vontade da maioria dos seus membros. Porém, analisando mais de perto as normas da vida de um colectivo, verificamos que, caso não se pretendam normas tão voláteis quanto o fazer e desfazer de maiorias, o número não pode ser o critério único ou mesmo fundamental. O princípio de tudo terá de ser a finalidade da instituição que adoptará as leis. Dito isto, não há deliberações no vazio, antes são sempre condicionadas pelo enquadramento institucional, social, cultural, económico – consoante a natureza e os fins da colectividade que estabelece as suas próprias normas – tanto no que ao presente diz respeito, como ao passado.
Mesmo no estabelecimento das leis há muitos poderes. Certamente há o poder dos números, da maioria, mas ao lado desse poder há outros poderes, eventualmente não menos importantes, o poder da memória, da melhor ou pior percepção dos diferentes enquadramentos, das ligações mais ou menos fortes aos poderes que de fora condicionam mais ou menos a instituição que pretende ser autónoma no seu funcionamento, ou seja, que pretende dotar-se de leis próprias, suas. Ao fim e ao cabo, tem maior poder quem, por um lado, conhece a exacta medida do seu poder, pois que não há poderes no vazio, mas todos os poderes são sempre condicionados por uma configuração dada à partida, e, por outro lado, tem uma ideia clara do que deve visar a instituição que se outorga leis. Só uma visão de conjunto, de preferência com uma certa distância, permite estabelecer o equilíbrio que deve sempre existir entre leis e poderes.