Urbi et Orbi -
Como surgiu o seu interesse pela comunidade judaica de Belmonte?
Antonieta Garcia - Fui para Belmonte nos
anos 70, fundar o Ciclo Preparatório que ainda não
existia. Foi aí que tive o primeiro contacto com
a comunidade. Mas foi só durante o mestrado que pensei
em desenvolver este tema.
Logo de início me apercebi que existiam imensas sombras,
histórias que não eram credíveis. Portanto,
propus-me demonstrar que a comunidade se tinha mantido desde
o século XV e não que teria regressado no
século XVIII com as políticas do Marquês
do Pombal. Ao avançar para o Doutoramento nesta área,
tentei comprovar a minha tese. Pode-se provar que havia
judeus em Belmonte nos séculos XVI, XVII e XVIII,
porque existem processos inquisitoriais. Nesse período,
foram presos e perseguidos, o registo existe.
O interesse foi despertado pela sede de saber como tinha
sido realmente a história daquela comunidade, que
ainda lá permanece.
U@O- Qual é o interesse desta comunidade
a nível internacional?
A.G.- Internacionalmente, há um interesse
enorme nesta comunidade. Belmonte representa um foco de
resistência e sobrevivência, uma coroa religiosa,
porque sem líderes religiosos, apenas com fé
na lei de Moisés, conseguiu manter-se.
A chegada de Manuel Schwarz [rabino, em 1986] veio relembrar
alguns hábitos e práticas. Foi um renascimento
que uniu a comunidade.
Na Covilhã, por exemplo, onde até houve
uma sinagoga, a tendência foram os casamentos mistos.
O mesmo não se verificou em Belmonte. Enquanto
noutros sítios a doutrina se foi diluindo, em Belmonte
perpetuou-se.
Belmonte pode ser considerado um laboratório para
aqueles que estudam culturas minoritárias, por
ser tão espantoso o facto de tão pequena
comunidade se ter preservado durante séculos. Aqui
a comunidade maioritária não assimilou a
menor.
U@O - Como coexistem as duas comunidades?
A.G.- Os judeus viviam, de certo modo, separados.
Por exemplo, entre 1886 e 1986, período temporal
do meu estudo, não houve nenhum homem de Belmonte
que se casasse com uma judia e o mesmo com o sexo oposto,
a não ser quando isso significou uma mudança
de estatuto para a mulher que, ao casar com um judeu ascenderia
financeiramente, mas estas excepções contam-se
pelos dedos das mãos. Uma das formas de preservar
a comunidade foi praticar a endogamia, durante muito tempo.
Frequentam as mesmas lojas, os mesmos bancos, mas toda
a gente sabe quem é judeu. As relações
são geralmente pacíficas, mas, por vezes
tornam-se conflituosas. Recordo-me de uma situação,
ainda no final da década de 80, devido a um filme,
do realizador belga Frederique Brener, rodado em Belmonte.
Lá revelava-se que as relações não
eram tão amistosas como se ouve no discurso “oficial”.
Em termos sociológicos e humanos, pode-se dizer
que a comunidade judaica se preservou, porque não
houve uma ligação muito profunda entre as
duas comunidades de Belmonte. A endogamia permitiu que
se perpetuassem rituais, uma espécie de zona protegida.
U@O - Que projectos são desenvolvidos
no Centro de Estudos Judaicos de que é responsável?
A.G.- Inicialmente, o projecto era conseguir
transferir para o CEJ, em microfilme, todo espólio
que havia da presença da Inquisição
na Beira Interior. Mas com as contenções
orçamentais, da parte da Torre do Tombo, deixou
de haver dinheiro para se fazerem microfilmes.
Continuamos a recolha de trabalhos, em coordenação
com a Torre do Tombo, mas não há muito interesse
por esta área, especialmente devido às sensibilidades
levantadas pelo conflito israelo-palestiniano.
Outro trabalho foi a digitalização de toda
a obra de António Ribeiro Sanches, o médico
de Penamacor.
U@O - Já dedicou várias obras às
tradições Beirãs. Que interesse lhe
despertam?
A.G.- Há muitas tradições
interessantíssimas em várias terras da Beira.
Tudo o que diga respeito à encomendação
das almas, tridentes do Paúl, festa do pote de
Monsanto, também chamada festa de Santa Cruz, tem
aspectos espantosos.
Na festa de Santa Cruz, por exemplo, as mulheres sobem
ao castelo de Monsanto, vão com adufes a cantar
o tempo todo, e com potes brancos à cabeça,
cheios de flores. Fazem uma procissão à
volta das mura-lhas. Depois, atiram o pote cá para
baixo. Quem empurra o pote é um homem e uma mulher
grita nesse momento, “Aí vai cântaro”,
mas é um grito muito intenso, terrível,
um som que arrepia. Entretanto, quando sobem ao monte,
levam também umas bonecas com uma estrutura de
cruz. São bonecas sem cara, que depois se guardam,
porque dizem que protegem, quando postas em cima das camas,
das trovoadas. São bonecas rituais, têm uma
função de protecção.
Um dia deram-me uma boneca idêntica a estas que
descrevi, vinda da Checoslováquia, que dizia em
baixo, “o enterro do inverno”. Há aqui
uma ligação. Interessam-me particularmente
as tradições e festividades da Páscoa
Beirã, que têm sempre a ver com a Primavera,
a ressurreição, de Cristo, em termos Cristãos
e da Natureza.
“Há algumas ideias em relação
à criação de cursos novos”
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Antonieta Garcia tem planos para o Departamento
de Letras da UBI
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U@O - Que benefícios trouxeram os cursos
de Português /Inglês e Português/Espanhol,
ao Departamento de Letras?
A.G.- Um Departamento de Letras apenas com o
curso de Língua e Cultura Portuguesas ficava, obviamente,
menos rico. A presença de pessoas que se interessam
por outras culturas e áreas de investigação,
vem de certeza enriquecê-lo. Neste caso, com os
próprios países, Inglaterra e Espanha, acontecem
contribuições e trocas culturais. Foi sem
dúvida muito enriquecedor para o Departamento.
Este ano, as vagas foram todas preenchidas e até
ultrapassadas. A grande surpresa é o curso de Português/Espanhol
que noutras universidades não tem ninguém
e aqui há alunos ainda para além das vagas.
U@O - Que reflexão lhe merecem os índices
de desemprego destes cursos?
A.G.- Qual é o curso, tirando Medicina,
que dá a certeza de um emprego? No caso dos professores,
como há concursos a nível nacional, há
também maior visibilidade relativamente aos desempregados.
Creio que este ano, em todas as universidades, os cursos
direccionados para o ensino sofreram um decréscimo
espantoso em termos de candidaturas. Fiquei surpreendi-a
com os acessos na UBI, enchemos as vagas de Português/Inglês
e de Português/Espanhol.
U@O - Que cursos gostaria de ter neste departamento
a curto ou médio prazo?
A.G.- Há algumas ideias em relação
à criação de cursos novos, mas ainda
não decidimos a área em que vamos apostar.
Regra geral passam por tradução, ciências
documentais e estudos europeus. Veremos o que é
possível, tendo em conta os recursos humanos que
o Departamento já tem, até pela contenção
de despesas que neste momento é preciso considerar.
Temos docentes preparados para as ciências documentais,
por exemplo, a funcionar em pós-graduação.
U@O - Foi pré-candidata à Câmara
Municipal de Belmonte. Perspectiva uma carreira política
no futuro?
A.G.- Na altura encarei essa hipótese
porque é uma das terras da Beira com que eu tenho
uma enorme ligação. Para responder a um
desafio dessa dimensão, queria um conjunto de pessoas
que achava serem importantes para o projecto.
Uma das minhas indicações, para levar até
ao fim a candidatura, era ter como presidente da Assembleia
Municipal, também uma senhora, e isso fez muita
confusão, na altura, finais dos anos 80. Essa era
uma das minhas exigências, embora não fosse
a única, e queriam impedi-la, então acabei
por desistir.
Neste momento já não pondero minimamente
essa situação. Primeiro, gosto muito daquilo
que faço, e depois há uma parte de investigação
que quero ter tempo para fazer.
A inquisição, a presença dos judeus
na Beira, continuam a ser temas que me interessam de tal
maneira que só muito dificilmente os trocaria por
qualquer outro desafio.
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Nasceu no Fundão, mas cresceu na
Guarda. Frequentou a escola primária
em Pinhel, e o ensino secundário
na cidade mais alta. Partiu depois para
Lisboa, onde se licenciou em Filologia Românica,
na Faculdade de Letras da Universidade Clássica.
Depois da Licenciatura começou a
dar aulas em escolas do Ciclo Preparatório,
primeiro em Setúbal, depois no Fundão
e, em seguida, na Escola Superior de Educação
de Castelo Branco. O Mestrado em Literatura
e Cultura Portuguesa e o Doutoramento em
Sociologia da Cultura foram ambos feitos
na Universidade Nova de Lisboa. "Quando
comecei a tirar as minhas pós-graduações
não tinha em mente a possibilidade
de vir a leccionar na universidade. Os motivos
pelos quais segui essa via foram o gosto
e o interesse. E foi por causa do Mestrado
que comecei a estudar a vertente judaica
de Belmonte", conta a presidente do
Departamento de Letras, na UBI desde 1999.
" Acabei por vir para a Universidade
após acabar o Doutoramento. Gosto
muito de trabalhar com pessoas capazes de
seguir o seu próprio raciocínio,
que tenham opiniões, para que o debate
seja possível. Por isso, achei que
devia falar com gente "mais crescida",
que pudesse inclusive explorar campos em
que também estou interessada, como
a literatura judaica ou a presença
de judeus na literatura portuguesa, entre
muitos outros".
Em Belmonte, que classifica de "uma
jóia da Beira", onde fundou
o Ciclo Preparatório, em 1971, encontrou
uma comunidade diferente e, descreve, "Agora,
já existem instituições
representativas do judaísmo, como
a sinagoga e o cemitério, mas naquele
tempo estava tudo encoberto. A comunidade
revestia-se de grande secretismo",
explica.
Esteve quase a seguir a carreira política,
ao ser pré-candidata à autarquia
belmontense, mas acabou por desistir desse
caminho. Não está arrependida.
Apaixonada pela comunidade judaica de Belmonte
e pelas tradições beirãs,
temas aos quais já dedicou várias
obras, divide-se ainda entre o Departamento
de Letras e o Centro de Estudos Judaicos
da UBI, que dirige. "Considero-me uma
privilegiada no trabalho, porque tenho feito
sempre aquilo que gosto", conclui.
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