Os judeus e as tradições beirãs apaixonam Antonieta Garcia
Entrevista com Antonieta Garcia
“A nível internacional há um enorme interesse pela comunidade judaica de Belmonte”

Apaixonada pela presença judaica e pelas tradições beirãs, a presidente do Departamento de Letras fala sobre as investigações que desenvolveu nestes campos.


Por Ana Maria Fonseca e Daniel Sousa e Silva


Urbi et Orbi - Como surgiu o seu interesse pela comunidade judaica de Belmonte?
Antonieta Garcia - Fui para Belmonte nos anos 70, fundar o Ciclo Preparatório que ainda não existia. Foi aí que tive o primeiro contacto com a comunidade. Mas foi só durante o mestrado que pensei em desenvolver este tema.
Logo de início me apercebi que existiam imensas sombras, histórias que não eram credíveis. Portanto, propus-me demonstrar que a comunidade se tinha mantido desde o século XV e não que teria regressado no século XVIII com as políticas do Marquês do Pombal. Ao avançar para o Doutoramento nesta área, tentei comprovar a minha tese. Pode-se provar que havia judeus em Belmonte nos séculos XVI, XVII e XVIII, porque existem processos inquisitoriais. Nesse período, foram presos e perseguidos, o registo existe.
O interesse foi despertado pela sede de saber como tinha sido realmente a história daquela comunidade, que ainda lá permanece.

U@O- Qual é o interesse desta comunidade a nível internacional?
A.G.-
Internacionalmente, há um interesse enorme nesta comunidade. Belmonte representa um foco de resistência e sobrevivência, uma coroa religiosa, porque sem líderes religiosos, apenas com fé na lei de Moisés, conseguiu manter-se.
A chegada de Manuel Schwarz [rabino, em 1986] veio relembrar alguns hábitos e práticas. Foi um renascimento que uniu a comunidade.
Na Covilhã, por exemplo, onde até houve uma sinagoga, a tendência foram os casamentos mistos. O mesmo não se verificou em Belmonte. Enquanto noutros sítios a doutrina se foi diluindo, em Belmonte perpetuou-se.
Belmonte pode ser considerado um laboratório para aqueles que estudam culturas minoritárias, por ser tão espantoso o facto de tão pequena comunidade se ter preservado durante séculos. Aqui a comunidade maioritária não assimilou a menor.

U@O - Como coexistem as duas comunidades?
A.G.-
Os judeus viviam, de certo modo, separados. Por exemplo, entre 1886 e 1986, período temporal do meu estudo, não houve nenhum homem de Belmonte que se casasse com uma judia e o mesmo com o sexo oposto, a não ser quando isso significou uma mudança de estatuto para a mulher que, ao casar com um judeu ascenderia financeiramente, mas estas excepções contam-se pelos dedos das mãos. Uma das formas de preservar a comunidade foi praticar a endogamia, durante muito tempo.
Frequentam as mesmas lojas, os mesmos bancos, mas toda a gente sabe quem é judeu. As relações são geralmente pacíficas, mas, por vezes tornam-se conflituosas. Recordo-me de uma situação, ainda no final da década de 80, devido a um filme, do realizador belga Frederique Brener, rodado em Belmonte. Lá revelava-se que as relações não eram tão amistosas como se ouve no discurso “oficial”.
Em termos sociológicos e humanos, pode-se dizer que a comunidade judaica se preservou, porque não houve uma ligação muito profunda entre as duas comunidades de Belmonte. A endogamia permitiu que se perpetuassem rituais, uma espécie de zona protegida.

U@O - Que projectos são desenvolvidos no Centro de Estudos Judaicos de que é responsável?
A.G.-
Inicialmente, o projecto era conseguir transferir para o CEJ, em microfilme, todo espólio que havia da presença da Inquisição na Beira Interior. Mas com as contenções orçamentais, da parte da Torre do Tombo, deixou de haver dinheiro para se fazerem microfilmes.
Continuamos a recolha de trabalhos, em coordenação com a Torre do Tombo, mas não há muito interesse por esta área, especialmente devido às sensibilidades levantadas pelo conflito israelo-palestiniano.
Outro trabalho foi a digitalização de toda a obra de António Ribeiro Sanches, o médico de Penamacor.

U@O - Já dedicou várias obras às tradições Beirãs. Que interesse lhe despertam?
A.G.-
Há muitas tradições interessantíssimas em várias terras da Beira. Tudo o que diga respeito à encomendação das almas, tridentes do Paúl, festa do pote de Monsanto, também chamada festa de Santa Cruz, tem aspectos espantosos.
Na festa de Santa Cruz, por exemplo, as mulheres sobem ao castelo de Monsanto, vão com adufes a cantar o tempo todo, e com potes brancos à cabeça, cheios de flores. Fazem uma procissão à volta das mura-lhas. Depois, atiram o pote cá para baixo. Quem empurra o pote é um homem e uma mulher grita nesse momento, “Aí vai cântaro”, mas é um grito muito intenso, terrível, um som que arrepia. Entretanto, quando sobem ao monte, levam também umas bonecas com uma estrutura de cruz. São bonecas sem cara, que depois se guardam, porque dizem que protegem, quando postas em cima das camas, das trovoadas. São bonecas rituais, têm uma função de protecção.
Um dia deram-me uma boneca idêntica a estas que descrevi, vinda da Checoslováquia, que dizia em baixo, “o enterro do inverno”. Há aqui uma ligação. Interessam-me particularmente as tradições e festividades da Páscoa Beirã, que têm sempre a ver com a Primavera, a ressurreição, de Cristo, em termos Cristãos e da Natureza.




“Há algumas ideias em relação à criação de cursos novos”

Antonieta Garcia tem planos para o Departamento de Letras da UBI

U@O - Que benefícios trouxeram os cursos de Português /Inglês e Português/Espanhol, ao Departamento de Letras?
A.G.-
Um Departamento de Letras apenas com o curso de Língua e Cultura Portuguesas ficava, obviamente, menos rico. A presença de pessoas que se interessam por outras culturas e áreas de investigação, vem de certeza enriquecê-lo. Neste caso, com os próprios países, Inglaterra e Espanha, acontecem contribuições e trocas culturais. Foi sem dúvida muito enriquecedor para o Departamento.
Este ano, as vagas foram todas preenchidas e até ultrapassadas. A grande surpresa é o curso de Português/Espanhol que noutras universidades não tem ninguém e aqui há alunos ainda para além das vagas.

U@O - Que reflexão lhe merecem os índices de desemprego destes cursos?
A.G.-
Qual é o curso, tirando Medicina, que dá a certeza de um emprego? No caso dos professores, como há concursos a nível nacional, há também maior visibilidade relativamente aos desempregados.
Creio que este ano, em todas as universidades, os cursos direccionados para o ensino sofreram um decréscimo espantoso em termos de candidaturas. Fiquei surpreendi-a com os acessos na UBI, enchemos as vagas de Português/Inglês e de Português/Espanhol.

U@O - Que cursos gostaria de ter neste departamento a curto ou médio prazo?
A.G.-
Há algumas ideias em relação à criação de cursos novos, mas ainda não decidimos a área em que vamos apostar.
Regra geral passam por tradução, ciências documentais e estudos europeus. Veremos o que é possível, tendo em conta os recursos humanos que o Departamento já tem, até pela contenção de despesas que neste momento é preciso considerar. Temos docentes preparados para as ciências documentais, por exemplo, a funcionar em pós-graduação.

U@O - Foi pré-candidata à Câmara Municipal de Belmonte. Perspectiva uma carreira política no futuro?
A.G.-
Na altura encarei essa hipótese porque é uma das terras da Beira com que eu tenho uma enorme ligação. Para responder a um desafio dessa dimensão, queria um conjunto de pessoas que achava serem importantes para o projecto.
Uma das minhas indicações, para levar até ao fim a candidatura, era ter como presidente da Assembleia Municipal, também uma senhora, e isso fez muita confusão, na altura, finais dos anos 80. Essa era uma das minhas exigências, embora não fosse a única, e queriam impedi-la, então acabei por desistir.
Neste momento já não pondero minimamente essa situação. Primeiro, gosto muito daquilo que faço, e depois há uma parte de investigação que quero ter tempo para fazer.
A inquisição, a presença dos judeus na Beira, continuam a ser temas que me interessam de tal maneira que só muito dificilmente os trocaria por qualquer outro desafio.





Perfil



Nasceu no Fundão, mas cresceu na Guarda. Frequentou a escola primária em Pinhel, e o ensino secundário na cidade mais alta. Partiu depois para Lisboa, onde se licenciou em Filologia Românica, na Faculdade de Letras da Universidade Clássica. Depois da Licenciatura começou a dar aulas em escolas do Ciclo Preparatório, primeiro em Setúbal, depois no Fundão e, em seguida, na Escola Superior de Educação de Castelo Branco. O Mestrado em Literatura e Cultura Portuguesa e o Doutoramento em Sociologia da Cultura foram ambos feitos na Universidade Nova de Lisboa. "Quando comecei a tirar as minhas pós-graduações não tinha em mente a possibilidade de vir a leccionar na universidade. Os motivos pelos quais segui essa via foram o gosto e o interesse. E foi por causa do Mestrado que comecei a estudar a vertente judaica de Belmonte", conta a presidente do Departamento de Letras, na UBI desde 1999.
" Acabei por vir para a Universidade após acabar o Doutoramento. Gosto muito de trabalhar com pessoas capazes de seguir o seu próprio raciocínio, que tenham opiniões, para que o debate seja possível. Por isso, achei que devia falar com gente "mais crescida", que pudesse inclusive explorar campos em que também estou interessada, como a literatura judaica ou a presença de judeus na literatura portuguesa, entre muitos outros".
Em Belmonte, que classifica de "uma jóia da Beira", onde fundou o Ciclo Preparatório, em 1971, encontrou uma comunidade diferente e, descreve, "Agora, já existem instituições representativas do judaísmo, como a sinagoga e o cemitério, mas naquele tempo estava tudo encoberto. A comunidade revestia-se de grande secretismo", explica.
Esteve quase a seguir a carreira política, ao ser pré-candidata à autarquia belmontense, mas acabou por desistir desse caminho. Não está arrependida.
Apaixonada pela comunidade judaica de Belmonte e pelas tradições beirãs, temas aos quais já dedicou várias obras, divide-se ainda entre o Departamento de Letras e o Centro de Estudos Judaicos da UBI, que dirige. "Considero-me uma privilegiada no trabalho, porque tenho feito sempre aquilo que gosto", conclui.