No coração do Guadiana
Alcoutim
Por Nélia Sousa
O tempo parece ter parado nesta pequena
e pacata povoação do nordeste algarvio, incólume à
construção das faustosas "catedrais" do turismo algarvio.
Em Alcoutim as "vozes" da tradição ecoam por todo o concelho
que abrange as freguesias de Giões, Martilongo, Pereiro e Vaqueiros. As
casas caiadas de um branco puro, debruadas nas portas e janelas pelos tons de
amarelo e azul, ornamentadas por interessantes platibandas, açoteias e
chaminés rendilhadas constituem um valioso tesouro da arquitectura regional.
A poucos metros de distância está o Guadiana e a espreitar logo do
outro lado da margem encontra-se a vizinha localidade espanhola de Sanlucar del
Guadiana.
Alcoutim orgulha-se do seu património histórico-cultural, fruto
de uma herança deixada pelos povos que a habitaram. Segundo dita a história
por aqui passaram os celtas, romanos, visigodos e mouros, mas coube aos romanos
a atribuição do nome Alcoutinium, do qual deriva o actual topónimo.
Por esse Guadiana acima
É certo que nas férias o carro é
o nosso melhor aliado, guiando-nos pelos sítios que desejamosvisitar
e explorar, mas na maior parte das vezes acaba por se tornar desvantajoso, enfiando-nos
nas longas e fastidiosas filas, já para não falar das constantes
dores de cabeça para arranjar estacionamento, contribuindo, desta forma,
para que as férias sejam um acumular de cansaço e fadiga mental.
Com isto tudo acabamos por nos esquecer dos meios de transporte alternativos,
mais viáveis e económicos nestas alturas do ano: comboio, autocarro
e até mesmo o barco. É isso mesmo que lhe propomos caso queira seguir
até Alcoutim.
Ancorados no porto de Vila Real de Santo António encontram-se alguns barcos
turísticos que efectuam pequenos cruzeiros por essa longa estrada líquida,
enriquecida por espécies animais e vegetais de toda a espécie, que
é o Guadiana. Só mesmo embarcando num destes cascos para se descrever
a sensação de calma e serenidade que invade a nossa alma. A beleza
agreste da paisagem contrasta com o azul intenso das águas do Guadiana,
habitadas por dezenas de alforrecas, que ao longo do passeio são uma constante.
Junto à margem avistam-se aqui e ali pequenas povoações,
cujos acessos são dificultados pela escassez de meios de transporte, o
cenário típico das zonas interiores. Almada de Ouro, Foz de Odeleite,
Álamo, Guerreiros do Rio, Montinho das Laranjeiras são testemunhas
de um presente saudoso do passado rico e glorioso de outrora e obstinado às
mudanças disformes imputadas nas zonas costeiras.
Estes pequenos povoados, espalhados ao longo do Guadiana, transparecendo a brancura
da cal no espelho das águas do rio, convidam o visitante a pôr a
mochila às costas e partir rumo à aventura, desbravando o interior
serrano, de uma inconfundível beleza agreste, suavizada pelo verde dos
montes, recortados pelos velhos caminhos que serpenteiam por entre os vales e
levando-nos a lugares inabitáveis e selváticos.
Vestígios do passado
Alcoutim
é uma vila cheia de história, presente nos templos religiosos, nas
ruas íngremes e tortuosas e nas singelas casas centenárias.
Sobranceiro ao rio e situado num plano elevado, destaca-se a figura marcante do
castelo, construído no século XIV com o intuito de defender a zona
fronteiriça. Sofreu alterações no século XVII para
adaptação à artilharia. Das muralhas avistam-se amplos panoramas
que vão desde o verde intenso das colinas decoradas pelas flores das estevas,
tão típicas da serra algarvia, até ao azul penetrante das
águas do rio. No seu interior encontra-se o Museu com os achados arqueológicos
e vestígios das edificações descobertas durante as escavações.
Para além do castelo o visitante pode ainda admirar a beleza arquitectónica
da Ermida de Nossa Senhora da Conceição, alvo de sucessivas reconstruções,
tendo a última sido efectuada no século XVIII e do qual se destaca
o interessante e cenográfico escadório barroco que dá acesso
a um adro que é ao mesmo tempo um magnígico miradouro sobre a vila
e os campos circundantes; a Igreja da Misericórdia e a Ermida de Santo
António.
Obrigatória é a visita à Igreja Matriz , erguida entre 1538
e 1554, um dos melhores exemplares do Primeiro Renascimento no Algarve. Do seu
interior destacam-se os capitéis, de formosa elaboração,
e o interessante conjunto de imaginária religiosa.
A casa dos Condes de Alcoutim, casa do Capitão-Mor, Ermida de Santa Marta,
as Ruínas bizantinas do Montinho das Laranjeiras e as ruínas do
Castelo Velho, uma antiga fortificação árabe, situado a 1
km de Alcoutim são outros pontos de interesse.
De seguida, sugerimos-lhe, que parta à descoberta do concelho, em direcção
a Martinlongo, Giões, Pereiro e Vaqueiros e usufrua do que estes locais
têm de melhor.
Dos coloridos molins às
migas e vinagradas
Se os povos que habitaram estas longínquas
terras deixaram as suas indeléveis marcas nos edifícios
religiosos e nas habitações pessoais, o contributo da sua sabedoria
não se quedou apenas nestes aspectos alargando-se, também, ao artesanato
e à gastronomia locais.
Tecedeiras tradicionais, artesãos, ferreiros, albardeiros labutam diariamente
em prol de uma actividade que já conta séculos de existência.
Das suas mãos saem trabalhos de grande riqueza artística: mantas
de trapos, colchas, toalhas de linho, chapéus de palha, rendas, xailes,
cestos, enxadas, foices, os típicos molins coloridos para colocar no pescoço
das mulas, peças de latoaria, marcenaria, cestos de cana ou vime, bonecos
de juta representando figuras típicas da região, flores secas de
folha de milho, alforges, entre outros.
Para dar a conhecer esta tradicional e genuína arte popular do nordeste
algarvio realiza-se todos os anos a Feira de Artesanato de Alcoutim, considerada
uma referência no calendário de feiras e mercados do Algarve.
Contudo, a desertificação e o desinteresse das camadas mais jovens
constituem uma séria ameça para o futuro desenvolvimento desta arte
tão popular. Esperemos que se criem alternativas para que o saber dos antigos
persista na consciência dos mais novos.
À riqueza do artesanato juntam-se os bons sabores da serra. Afastada do
mar e de todos os recursos que este oferece, a gastronomia local, confina-se essencialmente
à carne de porco e de borrego e em tempo de caça aos coelhos, lebres,
perdizes e javalis.
Os pratos mais característicos são as migas, o gaspacho e as vinagradas,
bem como o grão, o feijão, favas e ervilhas.
No entanto, pode-se fazer uma refeição apenas com vinho caseiro
e o saboroso pão cozido nos velhos fornos de lenha. Como aperitivos destacam-se
a azeitona, presunto, paio, chouriço, queijos de cabra e ovelha e o almece.
Junto ao Guadiana a refeição alarga-se para incluir os frescos mujes,
barbos, bordalos, pardelhas, achigãs, eirós e lampreias grelhados
nas brasas de carvão.
Perante esta vasta ementa quem consegue resistir a tantas iguarias? Mas há
mais. Não parta sem provar o nógado (feito de amêndoa e mel),
o bolo de massa de pão, as filhós, os folares, as azevias, os suspiros,
as pupias ou as costas. Provavelmente vai precisar de um bom digestivo para acalmar
o estômago. Como acontece um pouco por todo o Algarve a aguardente de figo
ou de medronho é a rainha das bebidas. Também em Alcoutim esta é
feita primorosamente pelas gentes da terra. Mas se preferir pode pedir igualmente
um licor de poejo, uma autêntica delícia.
Acolhedora e singela, a vila de Alcoutim é hoje um ponto de referência
nos itinerários turísticos do Algarve. Afinal foi aqui que se celebrou
o tratado de paz (Paz de Alcoutim) entre o rei de Portugal D. Fernando I e D.
Henrique, rei de Castela, que pôs fim à primeira guerra fernandina.
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